Postby pictish scout » 23 Jul 2008 21:28
Caminhei lentamente até à porta, demorei tempo suficiente para que quem estivesse lá fora voltasse a tocar. Mas tal não aconteceu. Estranhei e, com mais cuidado, espreitei pelo buraquinho da porta. Não estava lá ninguém.
Abri-a, sem medo. Esperava encontrar um dos matulões que me agredira no café, talvez os dois. Estava tão consumido pela frustração e raiva que me sentia capaz de os mandar para o hospital ao mesmo tempo. Mas não, não estava lá ninguém. Brilhava apenas a luzinha no elevador indicando que estava no rés-do-chão.
Não passara de uma brincadeira ou uma tentativa de me intimidar. Mas eu não estava intimidado, não ainda.
Olhei pela janela e esperei durante um ou dois minutos, a ver a chuva bater no vidro em meio ao nevoeiro cinzento formado pela poluição urbana. Ninguém saiu do prédio.
Amanhã compro uma arma, planeei eu.
O telefone tocou bruscamente.
- Não queres vir jantar comigo? – A voz de Ed soou rouca como sempre, mas continha algum entusiasmo… ao contrário da minha.
- Já não apareces por cá?
- Dá-me mais jeito se combinarmos noutro lado, hoje saio um pouco mais tarde. Vamos jantar à Portugália, pago eu.
- Hum… - A ideia não me agradava. Estava sem apetite e não queria perder tempo com deslocações desnecessárias. Queria entregar-me de corpo e alma ao caso, mas o Ed podia ajudar-me. – Tens a informação que te pedi?
- Claro. Às 9h, então.
- Ás 9…
O Ed era um tipo porreiro. Corrupto até ao tutano, mas nunca me deixara ficar mal. Se não tivesse havido a grande recessão económica na Inglaterra nunca o teria conhecido. Talvez fosse melhor assim. Por causa disso, Lisboa parecia-se cada vez mais com o “Allgarve”, só faltava a praia. Nunca me importei muito com isso. Ainda era uma criança quando o Estado, ao mesmo tempo que expulsava malta do Leste e de África, abrigou as famílias inglesas que escolheram Portugal para recomeçar a viver. Anos depois, o Ed apareceu na escola e sentou-se ao meu lado. O destino tem dessas coisas, tal como a ajuda humanitária aos euro-comparsas.
Por causa de uma avaria no metro, a quinta em três dias, apanhei o eléctrico e um táxi que me deixou quase a 100 metros do restaurante. Tive de caminhar à chuva até ver o casaco amarelo de Ed a brilhar à luz dos faróis dos carros.
Dei-lhe uma pancadinha nos ombros para o cumprimentar e seguimos até ao restaurante, não antes dele fazer pouco do meu olho inchado. Não fiz caso, mas começava a sentir um vazio no estômago.
- Desembucha – disse eu antes que a comida chegasse.
- Catarina Bragança – começou Ed com um sorriso matreiro. – Uma jovem esposa do empresário Rafael Costa Bragança. A morada confirma-se e vivem lá desde que se casaram. Dois anos de um casamento feliz. Ela é licenciada em História da Arte. O carro está em nome do marido, tal como a casa.
- Antecedentes criminais?
- Nada, não encontrei nada – retorquiu ele.
- Tenho de lhe fazer uma visita – disse eu, mais para mim do que para Ed. – Parece que quem anda a ameaçá-la é um chulo armado em mafioso. Não sei o que se passou entre eles, mas vou descobrir.
- Um chulo? – Os olhos de Ed reviraram-se. – De certeza que a senhorita está agarrada à coca, deve uma boa massa ao chulo e não quer pagar com o corpinho.
- E leva com ameaças de morte em bilhetinhos? – Sim, a ideia de Ed era ridícula. – Não me parece. Quanto muito, ameaçava contar ao marido dela ou fazia qualquer outro tipo de chantagem. Tem de haver algo muito mais grave entre eles, isto se o chulo for o autor das cartas.
- O que pensas fazer?
Pensei por alguns segundos. Ainda só passara um dia e parecia que tinha feito muita coisa. Conclui que isso era uma ilusão.
- Para já, tenho de arranjar uma arma antes que as coisas fiquem descontroladas – disse com o ar mais natural que consegui arranjar. – Depois, preciso de uma conversa séria com a Catarina Bragança e, de seguida, tenho de entrevistar os empregados que trabalham em sua casa, já que são eles os únicos com acesso ao carro quando os patrões não estão. As cartas foram encontradas dentro do carro da Catarina Bragança.
Antes que pudesse responder, Ed foi surpreendido pelo cheiro quente do bife afogado em molho de manteiga.
- Mais uma imperial, fachavor – disse eu ao empregado de mesa, enquanto metia o guardanapo sobre as pernas. Alguma coisa me fez lembrar que tinha informação acerca de um tal de Joel Raposo, empresário da noite, que também fora ameaçado através de cartas anónimas. Talvez Catarina Bragança soubesse de alguma coisa sobre isso.
Empresário da noite, chulo… ao menos a miúda sabia divertir-se.
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