- Sei que não acredita em mim, mas estou do seu lado, José...
A voz não parecia a de Catarina. Não da mesma Catarina que momentos antes se havia dirigido a mim movimentando o corpo esguio, sincronizado, com evidentes intenções terceiras. Toda a envolvente viperina da Femme-Fatale desaparecera. No seu lugar encontrava-se agora a voz de uma mulher esgotada. Rodei a cadeira sobre o eixo e olhei para a figura envolta nas sombras. Estava de pé, encostada a uma coluna, com a cabeça apoiada na pedra, de lado, e metade do rosto na escuridão.
- É mais um dos seus truques? Estou a ficar cansado de ser o....
- Não. Estou farta disto tudo. Acabou-se a farsa.
- Prove-o. Porque tentaram matar-me? Primeiro matar-me. Chantagear-me depois, para que cometesse um homicídio-
- Não sei. Não foi o Júlio que o tentou matar. Disso tenho a certeza. O José é mais valioso para ele vivo do que morto, pelo menos por enquanto - Desapoiou-se da coluna com um ligeiro empurrão de ombro e começou a aproximar-se de mim. O rosto, exposto à claridade do abajur da secretária, revelava uns dez anos em cima da figura jovial que eu estava habituado a ver. Dois trilhos negros paralelos, formados por restos de maquilhagem desbotada pelas lágrimas, desciam-lhe dos olhos e desfiguravam-lhe a cara.
- Não acredito em si. Não é a primeira vez que se tenta aproveitar da minha ingenuidade.
- O jogo do Júlio é simples, e uma vez que já está a par das suas intenções quanto à miúda, não há grandes segredos a ocultar: limpar as pistas que o ligam ao Rafael, ilibar-se de qualquer comportamento menos próprio de alguém com a sua reputação, e atirar as culpas para cima de um bode expiatório qualquer. Você, José, para ser mais concreta...
Pensei por momentos em que reputação estaria ela a falar ao certo. O Júlio Mascaranhas, preocupado com as revelações de uma faceta menos própria da sua vida sexual? Pouco provável. Levantei-me da cadeira. A Catarina parou a um metro de mim. Estávamos a sós pela primeira vez desde que ela entrara no meu escritório com o engodo das cartas. Aquele rosto magoado confundia-me o raciocínio e atirava-me os sentimentos para regiões ambíguas, locais da mente que o velho Jack tratava de votar ao abandono.
- Que papel tem no meio disto tudo?
- Eu? - olhou para o lado, evitando encarar-me de frente - E sou mais um pião no jogo mortífero entre o Rafael e do Júlio. O meu casamento foi uma fachada desde o primeiro momento...
- E a miúda? Nenhuma mãe é insensível a ponto de querer que a própria filha... - As palavras morreram-me na boca.
- Sim... Sim... ela não é minha filha. Eu não sou quem o José pensa que sou. Pelo menos até certo ponto. E ela... é filha do Rafael. O meu marido obrigava a própria filha a fazer aquilo com ele. Filmava-a. E ela gostava.
Ao longo de vários anos de casos e casos de infidelidade conjugal, em que não poucas vezes me vira na necessidade de confrontar as esposas ou os esposos em falta com a verdade, aprendera a verificar os sinais físicos lançados pelo sistema nervoso quando impulsionado pela presença de uma mentira. As pequenas contorções nos músculos do rosto, o olhar fugidio e aleatório, a inquietude das mãos, todo o comportamento corporal a revelar uma falta de à vontade, uma espécie de necessidade de se expandir - como se não estivesse confortável na roupa envolvente...
Por pior que as revelações soassem, a Catarina não estava a mentir. Decidi-me então levar a cabo algo que não me largava o pensamento desde há largas horas. Esbofeteei-a com força suficiente para a pôr a dormir, agarrei-lhe o corpo antes de atingir ao chão, e arrastei-o até um sofá do outro lado da sala. Resisti à tentação de lhe tirar o vestido e de me por a olhar para o que estava por baixo.
Voltei a sentar-me à secretária. Tirei do bolso o aparelhito de Mp3 que me ia salvar a vida - sete ou oito horas de conversas registadas ao longo dos últimos três dias. Peguei na lista telefónica e marquei o número da inspectora.
A voz de quem acabava de acordar de um sono profundo respondeu do outro lado da linha:
- Sim?... é bom que isto seja importante...
- Inspectora Mariana, vejo que não estou a interromper nada de importante. Tenho informações cruciais para lhe fornecer.
- Sr. Melo? Não acredito!!! Mas porque é que não me deixa em paz? São … três e meia da manhã… De onde está a ligar?
- Da casa do falecido Rafael Bragança. Será que pode dar aqui um pulinho?
- A estas horas? Há mais algum cadáver?
- Não...não... nada de tão dramático. Apenas algumas pistas que a vão colocar no trilho certo. E está aqui uma testemunha com vontade de falar. Na realidade, inspectora, estou-lhe a oferecer a noite mais importante da sua vida. Numa bandeja dourada.
- Está bem... está bem... dê-me uns minutos que eu já passo aí.
Pousei o auscultador e sorvi uns goles de whisky. O iPod, pousado à minha frente, na secretária de carvalho envernizado, continuava a gravar tudo o que era som.
- Nunca sabes quando parar, pois não Zé?
A voz gelou-me os sentidos. O copo caiu para o chão e despedaçou-se em mil cacos afiados, que rolaram através do soalho em todas as direcções da sala.
- Ed?
- As coisas que um gajo ouve por acaso…
Estava parado à entrada do escritório, com um revolver numa mão e três cassetes VHS na outra. Umas luvas de pele negra evitavam descuidos desnecessários.
- Já suspeitava de ti, Ed. Era uma questão de tempo até te apanhar.
- A sério, meu caro Zé? Suspeitavas do teu velho amigo de infância? Como é possível... - Baixou a cabeça e abanou-a em sinal de desagrado. A ironia revirou-me o estômago. Só o Jack me mantinha composto, afastado da loucura do confronto associado àquela revelação. Àquela confirmação.
- E as provas, Zé? Que provas tens contra mim?
Elevei as mãos em sinal de rendição.
- O que ainda não entendi foi a razão, Ed. Dinheiro? O que é que este caso todo tem para te oferecer? Andas a chantagear alguém?
- Não. Desta vez não foram as notas. Sempre burro, como de costume. É justo que saibas a verdade. Tens direito a uma explicação, à laia das últimas refeições concedidas aos condenados à morte. Enquanto pensas naquilo que te vou dizer, prepara-te para comeres uma bala na cabeça.
- A polícia vem a caminho...
- Não, não vem. Eu conheço os hábitos da Mariana muito bem. Lembra-te que trabalho com essa cabra às largos anos. Por esta altura ainda deve estar a pensar que sapatos há-de calçar, para além de que mora do outro lado da cidade. Temos tempo. E virá sozinha. Ela gosta de fazer o caso antes de o passar para outros colegas. É muito minuciosa, estás a ver? Quase que me tramou uma vez... Mas não perde pela demora.
- Não sabes dos outros polícias a quem falei quando vinha para cá...
- Bluf!
- O que tens para me dizer?
- Estás a ver estas cassetes? São as festas que o Rafael gravava com a filha dele. Eu apareço nalgumas delas. E o Júlio Mascaranhas também. Ainda demorei umas horas a arrombar o maldito cofre, mas pelos vistos foi tempo recompensado – primeiro apareces-me tu e essa bimba avantajada – apontou para o sofá - , e depois ainda convidas a minha querida amiga da polícia para a festa. Adeus, Zé...
Fechei os olhos. O som do tiro foi suficiente forte para me fazer recuar um passo, tropeçar na cadeira, e cair desamparado no chão, de costas. Para além de uma pontada aguda na omoplata esquerda, a que havia suportado a queda, nada mais sentia. Por momentos pensei que a dor do ferimento demorava uns segundos até chegar aos centros de alerta, depois pensei que provavelmente a bala tinha acertado nos próprios centros de alerta, e finalmente cheguei à conclusão de que não havia sido atingido. Levantei-me cautelosamente e espreitei por cima da secretária. O Ed estava estendido no chão. Só lhe via os pés. O resto do corpo estava para lá da porta do escritório. Uma poça de sangue expandia-se lentamente pelo chão em redor.
- Eu disse-lhe que estava do seu lado...
No sofá, uma Catarina com um ar destrambelhado segurava um mini-revólver fumegante.