Postby anavicenteferreira » 19 Aug 2008 22:55
Senti o cano de uma pistola encostada à nuca. Olhei para o espelho colocado num canto. Um gigante ruivo estava de pé atrás de mim, com um sorriso que só me fazia ter vontade de lhe partir os dentes todos. Nem dera pelo tipo ao atravessar o quarto.
É por isto que não bebo Cardhu. Com o velho Jack, desde que não abuse, sinto-me confortado, mas desperto; organiza-me as ideias. Com o Cardhu não; dá-me uma moleza estúpida, os sentidos embotam-se-me, perco noção do que me rodeia. A ponto de não ouvir alguém entrar no meu quarto de hotel e matar a prostituta que ainda tem as marcas das minhas mãos; ao ponto de não me aperceber de que esse alguém ainda estava cá dentro.
Fazíamos um par desigual. Ele uns bons dois palmos mais alto e mais largo do que eu, vestido de escuro, limpo e saudável. Eu no meu fato cinza, um pouco mais limpo graças aos esforços da criada do Raposo, mas ainda amarrotado e a precisar de uma boa lavagem; a minha cara marcada das pancadas, das perseguições, da falta de sono... Restaria poucas dúvidas a quem nos visse quem iria sair vencedor deste confronto.
O tamanho inusitado dele despertou-me uma memória e pergunto:
– És o gajo que me atacou no café, com o Rafael?
Ele empurrou o cano da pistola com mais força contra a minha cabeça.
– Pega na faca.
Os meus olhos caíram pela primeira vez na faca que está no chão aos pés de Jandira. É minha. Faz parte de um conjunto que um cozinheiro me ofereceu depois de eu ter descoberto quem é que andava a mexer nas contas do restaurante. Supostamente são umas facas japonesas especiais. Não sei, nunca as usei: as minhas capacidades culinárias limitam-se a telefonar para o take-away mais próximo; mas mantenho-as num bloco em cima da bancada da cozinha porque gosto do dragão de metal que têm embutido nos cabos vermelho-escuros.
– Pega na faca, – repetiu o mastodonte fulvo.
Sem ter por onde escapar, marquei a arma do crime com as minhas impressões digitais. O homem empurrou-me em direcção à varanda.
– Dá-me a carteira e as chaves.
Obedeci, enquanto o meu cérebro tentava descobrir uma saída, mas aquela pistola mantinha-se firmemente encostada à minha cabeça, mesmo enquanto atravessávamos as portadas decrépitas que acediam à velha varanda. Pousei as mãos na balaustrada de ferro forjado. O metal desfez-se em flocos de ferrugem sob os meus dedos.
– É uma bela carteira. A minha bem andava a precisar de ser substituída, – disse o homem atrás de mim. – E agora vais saltar.
– Porque havia de fazer isso?
– Porque eu tenho a arma. – Por esta altura, já devia haver uma nódoa negra circular no meu escalpe. – Pensa nisto assim; se eu disparar, morres de certeza; se saltares, talvez só partas uns ossos e vais para Caxias em vez de te enfiarem no calabouço da Judite.
– Se me matares a tiro, a polícia fica a saber que não fui eu quem matou a Jandira ou o Joe e aí para que serve toda esta fita?
A arma deslizou para o lado direito da minha cabeça.
– Suícidio de uma maneira ou suicídio de outra... a mim tanto se me dá.
Olhei para baixo. Deviam ser uns quinze metros até ao empedrado do passeio. Tentei recordar-me de tudo o que aprendi nos vários cursos de preparação física que fui fazendo ao longo dos anos. Ultimamento tinha-me descuidado com o ginásio; falta de motivação, não é preciso estar em muito boa forma para perseguir adúlteros. As probabilidades de chegar lá abaixo inteiro e conseguir pôr-me a andar não me pareciam boas. Inclinei-me sobre a balaustrada e uma mão pousou-me sobre o ombro esquerdo.
– Espera. Não vale a pena levares isto contigo, não para onde vais.
A mão dele deixou-me o ombro e senti-o inclinar-se sobre mim, atraído por qualquer coisa que vira no bolso de trás das minhas calças. Ao mesmo tempo, a pistola afastou-se da minha têmpora.
Desesperado, virei-me e ataquei, aproveitando o breve momento de distração. Agarrei-lhe a mão que segurava a arma e mantive-a afastada. Debatemo-nos, mas ele era mais forte e pesado do que eu e em breve me empurrava contra os ferros da varanda.
Num último esforço, dei-lhe um empurrão e consegui inverter a nossa posição, mas a balaustrada carcomida pelo tempo e pelo descuido não aguentou a pressão. Cedeu e caímos em direcção à rua.
Ele aterrou de costas e eu caí em em cima dele, dorido, mas vivo. Ergui-me sem fôlego e olhei em volta. A travessa estava vazia na semi-obscuridade do entardecer. No chão uma poça de sangue alargava-se, formando um halo demoníaco à volta da cabeça quebrada do mastodonte.
Recuperei a minha carteira e chaves e peguei também nas dele. Mais tarde iria examiná-las; talvez se conseguisse encontrar o covil da besta, pudesse perceber um pouco mais do que se passava. Naquele momento, porém, precisava de sair dali. Corri até à esquina seguinte e enfiei por mais duas vielas, até chegar a uma rua mais movimentada; aí recomecei a andar calmamente, tentando não atrair atenções.
Enfiei-me na primeira estação de metro que encontrei e sentei-me num dos bancos da gare, respirando pesadamente e tentando organizar as ideias. Quase de mote própria, a minha mão dirigiu-se ao bolso traseiro das calças, precisava de saber o que atraíra a atença do meu assassino.
Fiquei a olhar por momentos para a nota amarrotada. Dez euros; os últimos dos sessenta que tinha levantado uns dias antes. Comecei a rir; um riso mecânico, metálico, estranho.
Ia ter de emoldurar a porra da nota.
Ana