Postby Marisa » 26 Mar 2010 11:43
Oiço a porta a fechar e o mundo fica silencioso, o vento pára, o ruído pára e sou só eu, eu e o meu carro.
Não quero ouvir o que dizes, cala-te, agora sou só eu.
Carrego na embraiagem com toda a força que tenho, o pedal encosta e meto a mudança em ponto morto. - Como tu, morta. - Já te disse, cala-te, agora não te quero ouvir.
Rodo a chave, ávida por ouvir o motor a trabalhar, ávida por ter controlo de uma coisa, o meu carro.
Ligo as luzes e não meto cinto, hoje não vou precisar.
Está na hora mas tu voltas a falar, ligo o rádio e meto o som no máximo. Não ouço a música, só me oiço a mim e ao meu carro.
Respiro fundo, sinto o meu coração bater, a mudança salta para a primeira, acelero lentamente, como se me estivesse a preparar. Tiro o pé bruscamente da embraiagem e sinto o meu corpo embater no banco. Agarro o volante com mais força, sinto os nós dos dedos ficarem rijos, a mão adapta-se à pele gasta do volante, enquanto que a outra mão procura a manete das mudanças e agarra-se a ela, dedos crispados, nervosos, preparados.
Bato com força na embraiagem, não quero saber, passo para uma segunda. Não quero saber de gentilezas. Carrego no acelerador, com força, o carro queixa-se, também não quero saber.
-Também nunca quiseste saber de nada. - Cala-te, agora não te quero ouvir, não mais.
Embraiagem, terceira, acelerador.
Embraiagem, quarta, acelerador.
Seis mil rotações.
Embraiagem, quinta, acelerador.
Quando entro na curva, o carro quer fugir, não deixo, acelero mais. -Devias deixar de acelerar tanto, dizes. - Deixa-me, não quero saber.
Olho para a frente e só vejo rectas.
Olho para a frente e só vejo água, lágrimas que me correm pela face. Não tinha reparado que estava a chorar. Mas estou e a culpa é tua.
Embraiagem, quarta, acelerador.
Embraiagem, quinta, acelerador.
O carro já não me consegue acompanhar, já não aguenta mais.
Não faz mal, já quase que não vejo a estrada.
Desligo o rádio, abro a janela até baixo. Sinto o vento bater-me na cara, com força, dói.
-Porque fazes isto? Pára o carro.
- Não te vou ouvir, já te disse. Acabou.
Faço mais pressão no acelerador, mesmo sabendo que não vai adiantar.
Fecho a mão com força e rodo o volante para a esquerda, rodo bruscamente como se fosse um brinquedo do parque de diversões. O carro vira, obedece-me como sempre fez. Vejo os separadores aproximarem-se. Uma parede de betão que me espera. Olho em frente, não vou desviar, espero, está quase. O carro bate, esqueceu a gentileza, bate com força, esmaga-se contra a parede, eu olho e vejo o vidro, vejo-o a aproximar-se e preparo-me. O meu corpo já foi impulsionado e eu já passei pelo vidro. Não sinto nada. Vejo a estrada e depois já não vejo mais nada.
Chega, eu disse-te, já não te ia mais ouvir. Chega. Não quero vozes a gritar comigo na minha própria cabeça. Quero silêncio. Chega. Eu avisei-te.
"Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe." Oscar Wilde