Tenho as mãos em cima do tampo da mesa e alguém fala comigo. Às vezes olho para as minhas mãos e duvido que elas sejam mesmo minhas, questiono-me se será possível que algo como mãos exista, pele e carne e ossos, tudo unido e criado, interligado de forma a dar existência a algo que de outra forma seria irreal. A vontade que eu tenho é de virar a mesa e perguntar ao mundo se existe.
O empregado traz caracóis para a mesa e eu sinto o cheiro dos orégãos e lembro-me que é Verão e sinto o cheiro da relva seca e reparo como está quente e mal consigo respirar, como a atmosfera que me envolve e que nos envolve é estranha e perigosamente densa, sinto o miasma que é o cheiro de uma cidade, com a sua mistura de fumo, mijo, merda, suor, ar quente e mar, sinto o cheiro a sal no ar e começo a ter medo de estar aqui sentado.
Estou sentado neste café há algumas horas, as pessoas falam comigo e eu respondo e rio-me e elas riem-se e fumamos cigarros e bebemos cervejas e somos felizes, dentro da nossa felicidade limitada, somos felizes dentro da felicidade que somos autorizados a ter.
Levanto-me. Tenho que andar. Tenho que andar e muito. Sou a fúria em andamento, a minha cara é a extensão lógica da raiva que tenho por dentro, os meus músculos faciais e os meus maxilares contraídos são a expressão que um tipo como eu deve envergar na rua, indiferente a olhares alheios, os meus olhos semi-cerrados são provavelmente a origem da expressão
SE OS OLHARES PUDESSEM MATAR
e eu caminho, indiferente a tudo e a todos, ando rápido, sinto o chão debaixo dos meus pés, sinto cada músculo do meu corpo a vibrar a cada passo que dou, ouço o meu coração bater, o sangue a correr nas veias e por esta altura quase corro.
Há um barulho inerente a todas as cidades, aquele burburinho desagradável que te provoca muito rapidamente um conjunto demoníaco de enxaquecas. Vozes, conversas, automóveis com as suas buzinas e os seus escapes e os seus motores e camiões do lixo e chapa a bater contra chapa e centrais eléctricas e fábricas de tecidos e um mundo que se move dentro de outro mundo, ao pé de ti, ao lado de ti e dentro de ti. E por muito que andes ou corras é-te oficialmente impossível acompanha-lo.
Ando frenético pela rua de phones nos ouvidos, ouço a música tocar, as cordas da guitarra a vibrarem, os tambores da bateria a gemerem e quase choro por não poder ouvir esta música pela primeira vez de novo.
Ando a correr pela rua e quase sinto as pessoas a desviarem-se de mim e o vento a desviar-se de mim e a minha cara é uma extensão lógica do meu corpo e ando sem olhar para nada e o meu olhar baço perdido nestes pensamentos pensa que talvez o melhor que eu posso fazer é sentar-me no café e ser limitadamente feliz.
Ando a correr pela rua e atravesso a estrada sem olhar para nada e sou inevitavelme…