“Damn any man who sympathizes with Indians! ... I have come to kill Indians, and believe it is right and honourable to use any means under God's heaven to kill Indians” Col. John Milton Chivington, U.S. Army
O major Lindsley North sentia-se fatigado. Há já vários dias que cavalgava sem descanso como que fugindo dos fantasmas que o atormentavam. Na sua memória ainda relampejavam aquelas imagens sangrentas do massacre em Sand Creek. Acabou por ser um alívio a sua nomeação para comandar um forte nos confins do território americano. Um retiro isolado iria decerto ajudá-lo a lavar a alma daquele pesadelo em que se vira forçado a participar. Como a jornada já ia longa, apeou-se do seu companheiro de viagem – também ele morto de sede – para se aproximarem dum curso de água que sabia correr por ali perto. À medida que se acercava ouviu uma agradável voz feminina, num estranho e melodioso cântico. Abeirou-se um pouco mais, com todo o cuidado, e ficou fascinado com a bonita índia que se banhava numa das quedas de água que alimentavam o riacho onde ela se encontrava semi-mergulhada. A “squaw”, jovem e de pequena estatura, estava mal tratada, com diversas escoriações espalhadas pelo seu belo e delicado corpo. Naquele mesmo instante, estava a tentar pegar nos unguentos que ela deixara em cima de uma pedra sem que agora, porém, conseguisse lá chegar. Lindsley aproximou-se para ajudá-la. A pequena índia olhou para ele. Não parecia assustada nem mesmo surpreendida. Lembrava-se que, quando ainda era criança, o grande feiticeiro tinha prenunciado que, um dia, um cavaleiro todo vestido de branco se aproximaria dela para a ajudar, como uma águia alva descendo dos céus. Embora Lindsley não estivesse vestido, efectivamente, de branco – nem de perto, tendo em conta a camada de pó que o cobria – ela sabia que tinha chegado aquele momento profético. Lindsley sorriu para ela, alcançou os unguentos, entregando-lhos de seguida. Ela fez um gesto como que de agradecimento e começou a untar as feridas, sem qualquer espécie de pudor, embora estivesse ali toda nua sob o olhar daquele estranho que ela tão bem conhecia. Após o merecido banho e adequado tratamento, foi a vez de Lindley fazer o mesmo.
Depois de recompostos, estabeleceram enfim comunicação oral. Ela sabia, afinal, proferir algumas palavras em inglês. Dessa forma, Lindsley ficou a saber que o nome dela significava Olhar-que-sorri, embora o não conseguisse pronunciar na sua língua nativa. “Não podia ser mais apropriado”, pensou. Ela contou-lhe então que era filha de um dos grandes chefes cheyenne mortos no massacre de Sand Creek. Tal revelação atormentou ainda mais Lindsley que, à medida que a conversa avançava, se via cada vez mais atraído por aquela “verdadeira princesa índia”.
E durante muitas luas foram felizes: Lindsley, desiludido com o seu ideal, decidira ficar por ali com a sua jovem apaixonada, desertando do exército que servira com tanta lealdade até ao momento em que ele próprio se sentira traído. Afastaram-se das rotas conhecidas e estabeleceram-se num idílico local no meio das montanhas.
Um dia ao amanhecer, enquanto estavam ainda a dormir numa tipi improvisada, Lindsley acordou com o estranho relinchar do seu cavalo. Levantou-se e vestiu-se à pressa. Subiu ao cimo do morro e viu uma dezena de soldados a menos de uma milha do local onde se encontrava. Acordou a jovem princesa índia e começaram a fugir a pé. Não tinham percorrido muitas jardas quando ouviram um tiro. Tinham acabado de ser descobertos. Correram com quantas forças tinham até chegar a um desfiladeiro onde apenas uma velha ponte de cordas, lianas e tábuas corroídas unia as duas íngremes encostas. Lindsley, sem demora, obrigou a índia a atravessá-la. Ela olhou para ele. Já não era um olhar que sorria, era um olhar triste e assustado; um olhar que até doía. Mas o tempo era um bem que não tinham e, assim, a pequena índia atravessou aquela insegura ponte com a agilidade própria de quem se encontrava familiarizada com aquele tipo de obras de engenharia primitiva. Assim que chegou à outra encosta deu um grito: Lindsley começara a cortar as cordas e lianas fazendo a ponte ruir logo de seguida. Feito isso, um tiro atingiu-o no ombro. Virou-se e viu um grupo de homens armados a aproximarem-se chamando-o de traidor. Lindsley começou a ripostar atirando sobre eles. Contudo, esse acto heróico foi efémero porque o seu corpo iniciou um estanho bailado ao som de “tiro após tiro”, até que acabou por cair por terra. A Olhar-que-sorri assistiu a tudo horrorizada e, como já nada poderia fazer pelo seu amado cavaleiro, começou a encetar a sua fuga solitária por entre o arvoredo e o silvo das balas que a acolitavam… uma fuga que, naqueles instantes, julgava ser eterna…
Lindsley deu o seu último suspiro agonizante. Não conseguira sobreviver às graves feridas resultantes da batalha em que participara. A senhorita Anne tinha acabado de colocar um trapo humedecido sobre a sua testa demasiada febril. Ao longo destes últimos sete dias invejava aquela mulher que tinha “um olhar que sorria” pelas palavras delirantes daquele oficial de que fora incumbida de ajudar a tratar. O major Lindsley North entrava, assim, para a história como mais uma das baixas americanas no massacre de Sand Creek. Contam-se histórias de que teria sido alvejado pelos seus próprios soldados que desprezavam a sua simpatia pelos índios.
… depois de ter mergulhado no desfiladeiro, a princesa índia encontrava-se agora de mão dada com Manitou – o Grande Espírito – que a acompanhava pela longa pradaria. Viu o seu cavaleiro vestido todo de branco, sentado sobre um tronco de árvore. Lindsley olhou para ela feliz mas surpreendido com o seu papel agora de semi-deusa; ela também olhou para ele, fixamente, com um olhar… com um olhar que sorria.
Nota: este texto surgiu de uma pequena brincadeira/desafio de modo a emoldurar o seguinte cenário/personagens: uma "piquena", com "estatuto de semi-deusa", que não conseguia chegar ao champô, por se encontrar numa prateleira demasiada alta para ela, no chuveiro. :-P ;-)