Moderator: grayfox
Samwise wrote:Como prometido, aqui fica um excerto do Explicação dos Pássaros. Diria que é bastante representativo do estilo de escrita neste livro, apesar de haver algumas variações agudas aqui e ali ao longo da narrativa (até ao ponto onde estou, pelo menos). Está recheado de características que são típicas a este autor, embora aqui apresentadas de uma forma algo serena e espaçada (lê-se com fluidez e consegue-se apreciar sem sobressaltos) para aquilo que lhe conheço. Notem como começa algumas frases na terceira pessoa para logo depois mudar abruptamente para primeira...
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Levantou-se duas vezes de noite, agoniado e convulso, para vomitar aos arrancos, inclinado para a frente, pedaços semidesfeitos de iscas na retrete, tão tonto, tão pálido, tão maldisposto que pensou, aterrorizado, Vou morrer, enquanto a mulher se voltava para um lado e para o outro, porque a luz, os passos, os ruídos de aflição da minha garganta deviam invadir desagradavelmente o seu sono, como a campainha do despertador, na mesa de cabeceira quase encostada à bochecha, se enterra de manhã à laia de um estilete pelo ouvido dentro. Deviam ser cinco ou seis horas, a alma saía-lhe em pedaços gelatinosos pela boca murcha, e acabei por sentar-me em cuecas na cadeira verde junto à janela, a olhar pelos intervalos da persiana metálica a noite moribunda da ria, atravessada de viés por fiapos de claridade turva que pareciam nascer nos novelos de sombra dos pinheiros ou do basalto confuso, sobreposto, das nuvens. O estômago assemelhava-se a um polvo esbranquiçado de azia, retraindo-se e inchando no meu ventre, e cujos tentáculos de ácido deslizavam, ao longo das veias, na direcção das mãos. Devia ter febre porque sentia como que um fio de gripe no corpo apesar de ter vestido a camisola sobre a pele: as cerdas das pernas, espetadas, nasciam de conezinhos transidos, os testículos sumiam-se na mata roxa do púbis. A torneira aberta do lavatório ou do bidé jorrava a sua zanga lá no fundo, no cubo reverbante de azulejos em que me esvaziava de mim mesmo, como na tarde em que te acompanhei à parteira, embaraçado de timidez, para afogarmos o peixe que se alargava, curvo, no teu útero. Agora que dormes, incólume à cerveja e às iscas, e distingo, sob a colcha, a forma aproximada do teu corpo na aurora suja de Aveiro, agora que vou morrer de indigestão, de colite, de um estoiro de tripas definitivo e derradeiro, agora que as gengivas me sabem a molho podre e a tremoços estragados, e se calhar, ao acordares, me encontrarás de bruços no rebordo da banheira, mirando numa careta vítrea o meu próprio reflexo contorcido, lembro-me da tarde em que desci contigo do autocarro, perto do Príncipe Real, a caminho da parteira, cheio de medo, de culpabilidade, de remorsos. Nem sequer discutimos, quase nem sequer conversámos, avisaste-me ao princípio de morarmos juntos Não quero filhos, e nunca me atrevi a perguntar porquê, de receio que mudasses de ideias: os dois da Tucha e mais um ou dois teus seriam uma ninhada impossível para mim, uma mensalidade impossível para mim, uma preocupação impossível para mim, quatro crianças a ganirem à minha volta, a transformarem-se, a crescerem, havia um cubículo repleto de caixotes e jornais na Azedo Gneco, poeirento, húmido, esconso, A miúda (nunca me passou a ideia de um rapaz pela cabeça) e já lhe inventara o som da voz, o riso, a maneira de chorar, a cor do cabelo, o nome, o jeito reboludo das ancas, pensava Pomos o berço da miúda ali e nunca falava nisso contigo, escutava-lha as gargalhadas inaudíveis ao jantar e sorria no interior de mim mesmo ou por detrás do caldo knorr. Anunciaste Não quero filhos e tu sabias que eu sabia que o dizias por mim, pelo meu estúpido pavor de um neto de um guarda-republicano de palito na boca, porque não conseguia despir-me do meu pai, da minha mãe. da terrina da Companhia das Índias em que me embalaram. De maneira que quando me explicaste
- Não me vem a menstruação há dois meses, tenho uma morada de confiança na Praça das flores
continuei a ler, na cadeira de lona, a mesma revista indiferente, sob o candeeiro cromado, horrível, aparatoso, que desencantaste uma tarde num ferro-velho qualquer e instalaste triunfalmente na sala, no meio do lixo confuso em que vivíamos. E se eu tivesse dito na altura, Marília, Não, se eu tivesse dito, Marília, quero a criança, alguma coisa se alteraria entre nós?
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Até parece fácil...
Bubbles wrote:E com este excerto "Explicaçao dos Passaros" entrou para um lugar cimeiro na minha wishlist!
urukai wrote:Vou já a 1/5 do livro e já tenho uma opinião mais formada:
1) Não devia ter começado pelo Memória de Elefante. (hoje estive na Fnac a passar tempo e a ler as primeiras páginas de vários livros dele e gostei mt mais que a primeira página do Memória de Elefante)
2) O António Lobo Antunes é um escritor fenomenal.
3) O António Lobo Antunes não é um bom narrador.
Depois elaboro mais mas tenho uma mão a abarrotar de frases para transcrever para aqui...
Bugman wrote:O que há em ALA nao se passa tanto ao nível da narraçao mas de um desabafo. A minha experiência com ALA nao tem sido uma experiência de ir ler histórias, mas antes a de as histórias virem ter comigo, servidas em fatias da alma das personagens. Aquilo que se passa nos livros dele poderia passar-se perfeitamente numa consulta, num confessionário, no leito da morte...
É muito raro aparecerem bons romances antes dos trinta anos, muito raro. Um tipo só pode fazer uma coisa de jeito depois de ter passado pelas coisas. Se não viveu, os livros até podem estar «tecnologicamente» correctos, mas não há ali mais nada. A experiência de vida cada vez mais me parece fundamental.
Entrevista à Ler em 1997
Eu penso que aquilo que faz com que nós continuemos vivos e capazes de criar é isso mesmo, uma inquietação constante. Sem ela não pode haver criação, quem não põe sempre tudo em causa, arrisca-se a ter uma vida interior de três assoalhadas, num bairro económico.
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