Faltam dez minutos para uma aula. A dor de estômago retorna. O medo, o pavor. Todos os dias sinto vómitos a quererem sair pela boca. Os miúdos não me intimidam, estou lá para os ajudar, para lhes ensinar. Sinto-me poderosa, sinto que os posso ter na minha mão e maleá-los se os conseguir cativar. Sou jovem, sou actual - tenho o mundo a meus pés. O chão foge-me. As tonturas ameaçam voltar e atirar-me para o chão. Um surto de adrenalina passa. Digo as primeiras palavras. O pânico dissolve-se como uma pastilha. Já não tenho medo. Falo em inglês como quem fala português, não há que ter medo. Pego na caneta para escrever no quadro. Sei escrever esta palavra, mas de momento o medo volta... como se escreve isto? Durante uns micro-segundos tenho flashbacks das minhas professoras, a qual eu fazia a vida negra. "Oh professora isso está mal escrito" e eu toda contente ficava orgulhosa de ter corrigido uma professora no meu 8º ano. Hoje a cor foge-me do rosto sempre que estou em frente do quadro. Torno-me disléxica, torno-me tudo menos aquilo que realmente sou. Não consigo escrever nada, a mão treme. Quero treinar a fala com os meus alunos, mas não sei controlar uma turma. Arrependo-me de não ter seguido literatura. Pergunto a mim mesmo o que estou lá a fazer? Olho para os miúdos estão com uma cara de quem não está a entender nada do que digo. Entro em pânico outra vez. Olho para a minha orientadora. Faz-me sinal para eu apressar a aula. Meu deus, estes miúdos hoje só vão trabalhar. Tenho pena deles. No fundo não passam de miúdos, que não querem fazer nada da vida. Nem eu queria fazer alguma coisa na idade deles. Ao fim ao cabo perdoo-os. Lembro-me de como era quando tinha a idade deles. Depois lembro-me de ti. "Meu amor, para nos casarmos e irmos viver juntos, temos de juntar dinheiro e como vais fazer isso com um mestrado que ninguém quer? Segue ensino..." Como eu gostava de estar neste momento a fumar um cigarro com a Ana Luísa Amaral. Em vez disso encolho-me perante uma turma de miúdos. São eles que me ditam o futuro do mestrado... as minhas aulas depende de nós: estabelecer uma ligação entre eles como meus alunos interessados e motivados e eu enquanto mulher, mais do que professora. Quando estou nos corredores chamam-me por "professora" ou "miss"... Pareço outra pessoa.
Ainda não consegui distanciar a Ana mulher da Ana professora. Não sei se essas duas alguma vez se irão encontrar e ter uma conversa séria e profunda. Provavelmente a Ana professora irá falar do Governo e de como este ataca o funcionalismo público. A Ana enquanto mulher vai-se marimbar sobre o assunto e vai acrescentar que há problemas maiores neste mundo como o tráfego de mulheres. Enquanto estas duas conversam, junta-se à mesa a Ana crítica, aquela mulher fria, demasiado racional que gosta de analisar tudo e é acima de tudo bastante perfeccionista. Tomam as três um café. Quando vão a sair do bar, telefona a Ana escritora. Depois de fumar uns sete cigarros hipotéticos, acaba por dizer que não teve tempo nenhum para sair de casa, porque em menos de uma hora saiu-lhe pouco mais do que umas duas páginas. A Ana escritora é especialmente neurótica e tem a mania que tudo tem de ser trágico. A sua vida daria uma novela, que só passa na sua cabeça quando anda de comboio. Ainda assim a Ana professora existe há muito pouco tempo, a Ana como crítica é a verdadeira desgraça. Nem ela sabe como existe. A Ana mulher é uma tristeza de existência. Pensa demasiado e depois dá quase sempre asneira. Não consegue deixar de ter um fraquinho por feministas. No fundo a Ana mulher e Ana crítica juntam-se por vezes num menáge com a Ana escritora e a coisa fica negra. A neurose multiplica-se e enquanto a Ana escreve, a Ana crítica está a evitar de cometer erros feitos por outros escritores. O pior é que a Ana mulher não permite que a Ana como mulher saia do tema do feminismo e dá-se um cocktail de lesbianismo, apesar das quatro Anas nunca terem beijado uma rapariga. Acima de tudo as Anas gostam aparentemente de divagar. São mais ou menos como uma Wikipedia mexicana em movimento. A Ana mulher é especialmente sensível, aliada à Ana crítica dá-se uma catarse psicológica, em que os pensamentos são todos eles dignos de uma tragédia grega. O maior medo destas duas Anas é ficar sozinha. A insegurança em frente da criançada passa. O sorriso ocupa um bocado da cara, mas quando à noite antes de dormir mete a sua vida num fast-forward, pensa que um dia poderá vir a encontrar-se sozinha. Aí pensa que quem será o desgraçado que a quererá aturar. Todas as Anas não se consideram particularmente bonitas, nem minimamente atraentes. Não possuem qualquer charme. Quanto muito são umas cromas, que se vestem mais ou menos bem para tentar enganarem-se a si próprias ao espelho. Nesta esquizofrenia de pessoas, o mundo vai girando - a Ana mulher pensa como inovar o feminismo, a Ana crítica está a estudar religiosamente o dicionário de simbologia, a Ana professora em pânico a tentar preparar uma aula maravilhosa aplicando cinco livros teóricos que justifiquem as suas acções nas aulas e por fim a Ana escritora pensa que nunca na vida conseguirá ter alguma coisa publicada decente, porque a Ana crítica está sempre a mandar bocas. O espelho nunca mostra a mesma pessoa. Quando se olham ao espelho um dia tem o nariz mais comprido, e na hora seguinte o olho esquerdo parece-lhe maior. No fundo não importa a quantidade de sardas que cada uma tem, no fim o interior será sempre fragmentado. O espelho não projecta o meu interior, por isso quando a Ana se vê ao espelho fica contente com a imagem enganosa que este lhe projecta e vai-se embora.