Isobella passava por um período de transição.
O que a levara até aquele bar? Não sabia. Talvez um desejo silencioso de transgredir as regras impostas por uma família demasiado conservadora. Talvez simples curiosidade. Talvez o acaso. A música estava demasiado alta e as luzes latejavam. Um odor almiscarado sobrepunha-se a tudo. Sentou-se no bar, consciente que vários olhos se voltavam para ela. Escolhera as roupas cuidadosamente. Pretendia seduzir.
A mulher avançou pela sala. Os olhares viraram-se, holofotes do desejo, mal suprimidos no fumo do bar. Os saltos de estilete fincavam o ritmo das passadas, langorosas, o corpo dando uma impressão de meneio ao ritmo brutal do hardcore-techno. Encostou-se ao balcão, o decote traçando um V de carne branca, uma henna representando um pequeno dragão mordendo a cauda no seio esquerdo.
Suspirou um pedido à barwoman.
Tequilla, limão, soda.
Observou as outras do balcão. Olhares trocaram-se, sinais foram lançados, correspondidos. Isobella, vencendo a timidez, aproximou-se. Os passos, inseguros, denunciavam o nervosismo. A mulher pressentiu o medo, disfarçado debaixo do perfume barato. Olhou-a nos olhos, aproximou-se da face dela e abrindo convidativamente a boca deixou que as línguas se conhecessem. Passou, delicadamente, uma mão pelo meio das pernas de Isobella, sentindo o calor húmido do sexo. A inebriação feronómica tornou-se quase insuportável, obrigando-a a afastar-se, relutantemente. Isobella pensando não estar a agradar, estreitou-se num abraço invadindo-lhe ainda mais os sentidos. A mulher segredou-lhe: “Calma” no ouvido, roçando a ponta da língua pela orelha. A outra aliviou o amplexo.
Puxando-a para o meio da pista, dançaram, roçando as ancas, acariciando os seios e beijando-se. A pulsação das veias acompanhava o ritmo frenético do tecno. As músicas sucediam-se uma após outra, martelando as têmporas metronomicamente, abafando os suspiros e as promessas veladas. A mulher tinha de quase berrar ao ouvido de Isobella para se fazer ouvir por sobre o ruído. A rapariga estava tão desejosa quanto ela de sair dali e não ofereceu resistência quando foi puxada através da sala até ao hall de entrada. Na luz UV as faces delas brilharam, de suor e de desejo.
A noite estava fria. O túnel ligeiramente inclinado que levava até à boca da noite estava imerso na semi-obscuridade. Uma corrente de ar levantou-lhes os cabelos.
Decididamente a noite estava fria.
As pessoas tinham-se retirado das ruas para dentro dos night-clubs. Apenas os atrasados, os ébrios, as putas e os proxenetas habitavam as calçadas da cidade. De longe em longe os faróis penetrantes de um carro cortavam a neblina da noite. A mulher arrastou a amante para o parque de estacionamento. Um breve bip electrónico sinalizou a abertura das portas. Arrancaram num chiar de pneus. O alcatrão era devorado a uma velocidade excessiva para aquela parte velha da cidade. A noite era fria, mas dentro do carro o habitáculo estava quente. No leitor um CD dos Depeche Mode tocava. Uma estranha balada. Isobella colocou-lhe o braço por cima dos ombros. Afagou-a inexperientemente. A intenção era evidente mas a execução deixava um pouco a desejar. O carro entrou nos subúrbios.
Levaram meia-hora a chegar ao solar, altura em que a madrugada já quase se anunciava no fio do horizonte. Estacionou em frente da escadaria e sem uma palavra saiu do carro dirigindo-se para a entrada. A rapariga, algo atrapalhadamente seguiu-a. Sentia falta de um excitante. Só um, para manter a energia.
Nunca tinha conhecido alguém que vivesse num solar. Uma vez estivera numa festa de fim de ano em que tinha ido com mais uma quantidade de amigas para um solar para os lados de Sintra. Tinham jogado Vampire: The Masquerade. Nunca soubera quem fora o dono do casarão. E agora ali estava ela, seduzida pela mais bela mulher que alguma vez tinha visto, e que pelos vistos era rica. Cada porta da entrada dava à vontade para deixar passar um cavalo. Um mordomo abrira-as de par em par e ela vislumbrou um magnífico hall em mármore de tons dourados. Ao fundo uma escadaria dominava, conduzindo aos andares superiores. Para a esquerda um salão abria-se, as cortinas dançando na gélida brisa da quase manhã. No topo da escada a amante aguardava-a. Foi ao seu encontro.
Sem uma palavra foi levada a uma casa de banho. Era evidente que devia tomar um banho. Não se fez rogada.
Encontrou um roupão de seda em cima duma banqueta, a água na banheira cheirava a sais de banho. Estava tão saturada de espuma que não se via o fundo. Deixou que a água quente lhe abrisse os poros. Ao fundo pareceu-lhe ouvir o som de um violoncelo.
Enquanto secava o cabelo teve a certeza de ouvir novamente o lamento das cordas. Curiosa seguiu o som e foi ter a um quarto. Pela porta entreaberta escapavam-se os sons tristes do instrumento. Espreitou. Sentada num banco a amante tocava, os olhos fechados, a mão percorrendo o pescoço do violoncelo, enquanto com a outra deslizava o arco sobre as cordas. Uma música melodiosa vertia-se no ar. Sentiu um aperto na garganta, uma sensação de infinita tristeza, de algo para sempre perdido, irrecuperável. Subitamente a música parou. A outra olhava directamente para ela. Naquele instante sentiu-se exposta e teve vontade de fugir, mas as pernas não lhe obedeciam. Viu a outra pousar o instrumento no chão e atravessar o quarto até à porta. Pegou-lhe na mão e levou-a para a cama. Abriu-lhe o roupão, afastou-o dos ombros, parou para se despir. Afastou as pernas da rapariga e começou a lamber-lhe o clítoris, enquanto com um dedo a penetrava suavemente. Isobella arqueava o dorso, percorrida por ondas de paixão. Pousou as mãos na cabeça da amante, não queria que ela parasse, queria continuar a sentir aquela língua quente e algo áspera a roçar-lhe o feixe nervoso. Queria sentir mais do que um dedo dentro da vulva. Queria que aquele momento não acabasse, nunca.
A mão livre da amante percorreu-lhe a anca, o tórax, parou num seio, e com os dedos excitou o mamilo pequeno e duro. O quarto encheu-se de uma luminosidade. Uma luz dourada, omnipresente, sem origem. Quase enlouquecida pelos subtis aromas que o corpo da outra exalava, a mulher teve de exercer um supremo acto de auto-controle. Porque o outro chegava…
A presença materializou-se junto ao dossel. Era para todos os efeitos um homem, embora o tom alabastrino da pele o traísse. O pénis erecto também era um orgão que não encontrava paralelo na biologia dos humanos. Presa nas brumas dum quase sono a rapariga sonhou que era possuída, vezes e vezes. Via as faces de um homem e da sua amante que se revezavam, uma após outra, em rápida sucessão, num agoniante carrocel pulsante. Sentia o corpo dilacerado, mas as dores misturavam-se em prazer. Sentiu um orgasmo a chegar. Tentou demorá-lo, controlá-lo prolongar aquele misto de prazer e de dor, a sensação de estar e não estar, preenchida e vazia tudo ao memo tempo, mesclado em imagens imateriais, sem substância. O orgasmo veio numa onda, avassaladora, ininterrupta. E depois teve outro. E outro. O corpo esgotou-se de sensação. Ficou estática, dormente, imersa num pesadelo.
Acordou com uma dor de cabeça latejante. As têmporas febris pareciam querer rebentar como um melão demasiado maduro exposto ao Sol de Verão. Abriu os olhos. Esfregou-os sem resultado algum. Estava encerrada algures na mais completa escuridão.
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Sentia-se preso na angústia da renegação. Lembrava-se dos doces e etéreos campos e da face Dele. Há tanto tempo atrás. Quando o mundo era jovem. Antes do castigo. O eterno castigo.
Bebia pelo gargalo mas o álcool não produzia efeito. Era apenas uma sensação forte que logo passava. A rapariga esperava no calabouço a sua sorte. Nem sequer soubera o seu nome. Fora apenas mais uma, na interminável sucessão do seu castigo.
Repugnavam-lhe os seus actos. Queria fugir dali. Queria perder-se novamente na vasta planície das recordações. Memórias eram tudo o que lhe restava dos tempos antes da queda.
Ao fundo ouviu o doce lamento do violoncelo da irmã. Olhou para o espelho do boudoir. Irritado atirou com a garrafa contra o reflexo.
A música parou.
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Uma réstea de luz apareceu. A porta abriu-se quase de imediato. Ofuscada pelo súbito brilho não conseguiu divisar bem o vulto que se recortava a contra-luz. Este agarrou-a fortemente pelos pulsos e puxou-a para fora do quarto. Momentos depois, já habituada viu que era o mordomo. Demasiado assustada não conseguiu pronunciar palavra. Quem eram aquelas pessoas? O que queriam dela? Para onde a levavam? As perguntas atropelavam-se na cabeça mas a língua não as formava. Deixou-se ir. Foi posta nas traseiras duma carrinha de caixa fechada. O mordomo entrou para o lugar do condutor e pouco depois rolavam em direcção à saída. Um pensamento ocorreu-lhe: se a deixavam ver o caminho era porque não tinham intenções de a deixar escapar. Um calafrio percorreu-lhe a espinha. Enrolou-se no chão da carrinha. Queria chorar, mas mesmo esse alívio lhe era negado pelo corpo.
A meio da viagem sentiu o primeiro enjoo.
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Era já noite quando chegaram à enseada. Um bote e um pescador aguardava-os. O mordomo e o pescador trocaram meia dúzia de palavras. Os dois levaram-na para o bote. As dores eram tantas que mal conseguia caminhar. Meio a tropeçar, meio arrastada foi enfiada sem cerimónias no fundo do bote e o pescador deu um empurrão para o soltar da areia. O mordomo voltou à carrinha e partiu. O bote sulcou as águas até uma ilhota não muito distante.
Foi abandonada na ilhota. O pescador apontou-lhe a direcção de uma cabana que se entrevia no meio dos arbustos e deixou-a entregue a si própria. Ficou caída no cascalho a ouvir o ronronar do motor que se sumia na noite. As dores tinham acalmado. Se não se mexesse quase não as sentia. Mas estava frio. Muito frio. Devia abrigar-se na cabana. Esforçadamente, meio a pé, meio a rastejar subiu da orla do mar até sentir terra debaixo dos pés. Usando os arbustos como suportes foi vacilando até à entrada da cabana.
Era uma construção fraca de madeira, com um tecto de colmo. A porta fechava-se por meio de um laço de vime. Entrou. A única divisão diminuta tinha uma enxerga e um pote de barro a um canto. Abanou o pote e ouviu um chocalhar líquido no interior. Deitou-se na enxerga, o luar iluminando-lhe a face suada. Precisava descansar. Sentia-se exausta. Exausta até ao âmago. Lentamente as pálpebras cerraram-se, escondendo a luz argentina da lua.
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A manhã chegou húmida. Tinham-lhe vestido uma combinação que pouca defesa dava contra o frio. A custo moveu-se tentanto orientar-se. Estava entorpecida, precisava mexer-se, comer qualquer coisa. Tinha uma dor de cabeça terrível.
Sentia-se enjoada.
Tentou levantar-se mas uma letargia imensa toldava-lhe os movimentos. O mais que conseguiu foi virar-se na enxerga. Ficou de lado durante… uma hora, duas? Sentiu que adormecera novamente. Tinha fome. E frio.
O tempo cessara de fazer sentido, por entre pálpebras entreabertas via uma sucessão de dias e noites, num estado febril. Era impossível viver tanto tempo sem alimento, e contudo, vivia.
Certa manhã, gelada, pensou que delirava. Dentro da cabana estavam duas mulheres. Velhas, desgrenhadas, os cabelos pastosos agarrados à nuca, as bocas pejadas de dentes podres. Os olhos, contudo, brilhavam de cobiça. Olhavam fixamente para ela, murmuravam frases incoerentes e riam risinhos de loucura. Ela tentou falar, mas a língua entumescida não obedeceu. Isobella, fechou os olhos, com força, para fazer a terrível visão desaparecer. Uma violenta dor no baixo ventre despertou-a por completo. Por momentos esqueceu o frio, a fome, a sede, as febres que a roíam. O mundo inteiro encheu-se de uma dor brilhante, de um grito de agonia intensa. Os olhos espantados viram uma das velhas que arrancava com os dentes o que parecia ser uma tripa ensanguentada. E compreendeu. Com a compreensão veio a demência. Num único e fulgurante momento a última réstea de sanidade e humanidade quebrou-se com uma cana num joelho. Foi com olhos mortos que observou, como que de um lugar alto e distante, as duas velhas a devorarem o feto que arrancaram do seu ventre. E quando uma delas lhe ofereceu um bocado disforme e pingando placenta estendeu o pescoço e abocanhou-o, agradecida por finalmente saciar a fome.