
[b]Memórias no éter[/b]
O Cruzador de Batalha Dragão Quântico quebrou a esfera de influência do Posto de Controle Fronteiriço de Sol III #372. De imediato a Inteligência Artificial do posto interpelou o Cruzador exigindo o plano de voo, e os códigos de autorização.
A I. A. do Dragão Quântico emitiu o equivalente electrónico a um smilie dos antigos tempos da internet; criteriosamente seleccionou a informação requerida e prometeu enviá-la o mais breve possível, após verificar que não a encontrava no endereço de memória esperado. Pensou que o atraso de uns meses não faria grande mal. Desligou-se com a saudação habitual não se esquecendo de referenciar a possibilidade da compra da e-fanzine DQ #8 pelas vias normais. O PCF encolheu electronicamente os ombros e atribuiu as licenças de passagem. Já era por demais conhecida a relutância do Dragão Quântico em cumprir prazos e pedidos.
O cruzador singrou impávido ao som tonitruante de Assim Falava Zaratustra. Dentro de dias entraria na órbita excêntrica de Plutão e faria a primeira descarga de contentores no Sistema de Sol III. A I. A. procurou nos seus vastos arquivos de memória pelo plano de voo mas não o encontrando resolveu solicitá-lo novamente. Emitiu o pedido em onda curta mas de imediato recebeu a negativa. Esgotara o direito a solicitar cópias adicionais de planos de voo ao Centro de Coordenação Estratégica Galáctica.
Amargurada a I. A. pensou como longe iam os tempos gloriosos em que a mera menção do seu nome era suficiente para obrigar os planetas dissidentes a porem as suas Armadas de prevenção. Hoje fora relegada para o papel de cargueiro, percorrendo os outrora rebeldes sistemas solares a largar contentores cheios de brique-à-braque produzidos nas incansáveis fábricas do planeta Laranja. Algures nos seus porões abrigavam-se milhares e milhares de bonecos de acção do último filme de sci-fi que fazia furor na rede: Star Trek: A Mais Nova Geração que Fugiu do Quadrante Delta na Voyager. Havia também os jogos de cartas coleccionáveis em que as cartas raras excediam em largo número as comuns, como por exemplo o Feitiço: A Invocação. Haviam os comic books da adaptação do filme adaptado do jogo de vídeo inspirado na música do livro Rodinhas do Tempo Que Nunca Mais Acaba de um tal de Roberto Jordânia. Enfim era toda uma parafernália de artigos que iriam decerto alegrar as frias noites dos emigrantes e mineiros de Sol III. Havia ali de tudo menos filmes e álbuns musicais. Esses já não valiam a pena editar oficialmente pois já toda a gente fizera o download da rede. O truque encontrado pelos executivos para perverteram o esquema de pirataria organizada era precisamente o de criar um mundo de bonecada e artigos baseados nos heróis dos filmes e nas bandas musicais do momento. Os artigos físicos eram muito mais difíceis de contrafactuar.
O Dragão Quântico era auto-suficiente e não-tripulado no entanto nesta viagem recebera um cofre. Dentro dele, em suspensão animada, vinha o corpo do líder dos rebeldes da secessão. Era o único ser humano a bordo do cruzador. O seu nome era Bodak.
A pequena nave pousada na superfície agreste de Charon aguardava. Os sensores varriam o espaço em busca de sinais da sua presa. Nos últimos segundos recebera a confirmação do worm dentro do sistema operativo do Posto de Controle Fronteiriço #372 de que o cruzador/cargueiro Dragão Quântico entrara no sistema de Sol III. Em breve iria surgir nos monitores da Eagle 1. Mergulhado num intenso jogo de Star Trek: Fleet Academy, B0rg ainda não se apercebera do prolongado silvo dos monitores que alertavam timidamente para a iminente passagem da presa, pois a resistência era fútil e a assimilação uma questão de segundos e B0rg por nada deste cosmos se deteria no privilégio de inscrever o seu nome no ranking dos dez melhores jogadores de ST: Fleet Academy. Apenas quando os silvos passaram de tímidos a insistentes e os monitores da Eagle 1 se decidiram a activar os electro-choques da cadeira de comando é que B0rg se apercebeu da situação. Com um impropério largou de imediato o capacete de RV. Estivera perto, muito perto, mas não o suficiente.
Raios!
Porque era que sempre que estava tão perto de conseguir os pontos necessários surgia uma emergência?
De imediato absorveu a informação dos monitores membranosos, assimilando-a no composto cibernético que era o seu corpo. Pelo meio absorveu também uns restos de pizza, um post-it solto que por ali vagueava e uma barata que repousava na consola de comando, certamente atraída pelo gosto acaramelado das membranas dos monitores. Estava na hora de entrar em acção.
Os jactos impulsionaram a Eagle 1 que na majestade da sua alva brancura abandonou o solo de Charon e se dirigiu em vector tangencial de encontro ao cruzador que neste preciso instante era já visível a olho nu contra o fundo negro, como um pequeno ponto de luz néon. Caso B0rg aumentasse a resolução e activasse o zoom do seu olho prostético (com uma lente especialmente fabricada para ele nas conceituadas fábricas da Zeiss) poderia ver o marquee em brilhantes luzes anunciando a iminente edição da e-fanzine DQ #8. Com um sorriso feroz nos lábios B0rg empurrou as manetes para a potência máxima.
A I. A. do Dragão Quântico ruminava sobre glórias passadas quando um pequeno alarme surgiu num pouco usado endereço de memória. Ia quase a relegá-lo para a reciclagem binária quando se apercebeu que o indicador era vermelho vivo. De imediato ficou em alerta máximo. Com os sensores varreu toda a esfera espacial procurando situar o vector de aproximação. Por todo o casco portalós se abriram mostrando os eriçados dentes de canhões de plasma, canhões de iões, lança-misséis anti-matéria e os não menos ferozes lança-microdardos de tungsténio coberto a titânio. Os sistemas de search-and-destroy começaram freneticamente a perseguirem o elusivo alvo, mas fosse por o sistema de cobertura do alvo ser demasiado eficaz fosse por o software dos sistemas de search-and-destroy ser da Microsoft o facto é que os canhões e os lança-misséis não lograram alcançar nenhum alvo. Desesperada a I. A. tentou numa última manobra lançar um pedido de socorro mas os scramblers do atacante tornaram ineficaz qualquer comunicação do cruzador.
Impotente viu a aproximação da Eagle 1. Seguiu o seu movimento de docagem pelas câmaras exteriores. Viu as quatro patas metálicas colidirem contra o seu casco e as linhas de tensão hiper-magnética saírem disparadas do ventre agarrando-se fortemente às pegas de docagem. A manga desceu lentamente do ventre até ao portaló.
A I. A. achou por bem alterar a música. Strauss foi trocado por Beethoven. O Hino da Paz poderia, quem sabe, induzir os assaltantes a serem benignos. Afinal não frequentara aquele curso acelerado de psicologia para nada. Mas toda a esperança se esvaiu ao ver a figura cibernética do seu atacante.
B0rg! O mais temido pirata de todo aquele quadrante. Aqui! A bordo! Estava tudo perdido!
B0rg activou o sistema de infra-vermelhos. Estes malditos cruzadores poupavam em tudo! Até na luz dos corredores. Como vingança pelo desperdício de baterias que estava a ter certificar-se-ia de deixar as torneiras abertas na casa-de-banho. Ninguém brincava com as baterias de B0rg. Resoluto, avançou em direcção à ponte. Tinha umas palavrinhas a dizer à I. A. Velhas contas a ajustar.
Os corredores inundados pelo som da velha sinfonia estendiam-se serpenteantes em voltas e mais voltas. Algo confundido B0rg activou o mini-mapa mas de pouco lhe serviu. O seu sistema operativo Linux era incompatível com o do Dragão Quântico que preferia Microsoft. O mini-mapa era um amontoado confuso de símbolos e linhas sem nexo. Com um encolher de ombros cibernético B0rg deambulou pelos corredores que no seu infra-vermelhos surgiam como que banhados de sangue.
Viu-se defronte das comportas do porão de mercadorias. Não encontrara o caminho para a ponte, mas isso era assunto que poderia esperar. Por detrás daquelas comportas estavam tesouros inimagináveis! Era a reforma, a doce reforma! E depois... depois ninguém, nem nada, o impediria de jogar e jogar e jogar. Com a cabeça cheia de gloriosas imagens de rankings após rankings onde o seu nome figurava no topo, B0rg deitou-se a assimilar os comandos cibertrónicos de controle das comportas. Em menos de dois minutos conseguiu simular a interface Microsoft usando vários scripts clandestinos que obtivera em sourceforge.net.
As comportas abriram-se.
As lentes fizeram zoom. O vasto interior estava pejado de contentor após contentor em cima de contentor. Os dísticos nos lados não deixavam margens para dúvidas: Nuke Cola, Marvelite, Hasbrother, MGMToys, ColumbiaPictureCards.Com. Era um manancial de brinquedos, comics, divx’s, enfim, um mundo...
De lentes arregaladas B0rg avançou para o meio do porão mas algo faiscou na periferia da visão.
Estacou!
Por detrás de uma pilha de contentores um sarcófago de suspensão animada soltava pequenas nuvens de hidrogénio. As inscrições hieroglíficas por toda a face do sarcófago avisavam em várias línguas do Império para manejar com extrema precaução. A curiosidade sobrepôs-se e B0rg dirigiu-se de imediato ao sarcófago. Quem estaria lá dentro? E porque estava ali, naquele decrépito cruzador transformado em cargueiro? Das duas, uma.
Ou era alguém sem a mínima importância ou então...
Ou então era alguém tão importante que as forças imperiais queriam a todo o custo camuflar a viagem. Esta última hipótese fez soar campainhas nos chips de B0rg. Via-se já mergulhado em milhões e milhões de créditos imperiais. Um vasto arsenal de armas para a sua Eagle 1, haréns infindáveis de odaliscas e concubinas, e acima de tudo poderia hackar directamente os rankings. Para quê jogar quando se podia dar um toque nos rankings?
De imediato começou a quebrar os selos que estancavam o sarcófago. As portas recederam para o interior expondo o corpo. Os olhos do homem abriram-se e fitaram com animosidade B0rg.
- Sabes quem eu sou? – interpelou-o.
- Aqui no sarcófago diz que o teu nome é Bodak. – respondeu B0rg, muito orgulhoso dos seus poderes observacionais.
- Sim, sou o Bodak. Já viste um Bodak?
- Não nunca vi. Até este momento, quero dizer.
- Queres ver um Bodak?
- Estou a ver um! Acho...
- Sabes o que é um Bodak?
- És tu! Que raio de pergunta. Mas diz-me lá –
- Mas sabes mesmo o que é um Bodak? – interrompeu-o.
- Sim. Tu és um Bodak. Qual o problema. Mas o que eu quero saber é –
- Mas ouve lá, já alguma vez viste um Bodak?
- Irra, que tu bates sempre na mesma tecla. Ouve lá bacano. O que eu tenho de saber é o que fazias ali congelado e porque vens aqui dentro deste cruzador. – B0rg começava a irritar-se com o olhar insistente do homem e com a sua continuada lenga-lenga sobre o que era ser um Bodak. A suspensão devia ter-lhe queimado alguns neurónios. Acontecia por vezes. Alguns sarcófagos tinham defeitos de fabrico, principalmente os que vinham do Taiwan, e depois o resultado era isto. Semi-vegetais, sempre a balbuciarem a mesma rotina, vezes e vezes sem conta. Enfadonho, no mínimo. Agora tinha era de descobrir quem raios era aquele Bodak. O nome não lhe era estranho, mas como deixara o chip da Biblioteca Universal no Eagle 1 agora não tinha maneira de consultar os arquivos. Paciência. Ainda tinha muita coisa para fazer. Contentores para arrombar, contas a ajustar...
- Queres ver um Bodak?
- Opá tu sai para lá com essa conversa que já chateia. Safa! Melga. Larga-me da mão.
Nesse momento a I. A. achou por bem interromper a conversa para anunciar que tinha uma declaração a fazer. B0rg e Bodak estacaram, suspensos no meio duma frase. Sentindo o silêncio a I. A. anunciou, no seu tom mais solene que em breve estaria disponível para download o #8 da e-zine Dragão Quântico, com participações de Wink, LordK e John Pebbles.
- Deve estar a gozar comigo esta I. A.! – exclamou B0rg – Ó I. A. dum raio mas tu pensas que eu ia dar cinco créditos imperiais pela porcaria da tua e-zine? Saco tudo do KãoZão! A informação é livre, pá!
- Então nesse caso sinto-me forçado a mantê-lo sob prisão para o entregar às autoridades. O download ilegal é crime punível conforme o Código Civil Unificado na sua revisão de 2147, art.º 741 e seguintes do Título II, Livro IV. – respondeu em tom ligeiramente nervoso a I. A. ao mesmo tempo que contabilizava as possíveis perdas pelo download ilegal. Era um assunto sobre o qual nunca se debruçara mas este pirata tivera o condão de o alertar para a necessidade imperiosa de colocar DRM no e-book.
- Deves jogar póquer tu! Então pensas que eu caía nessa esparrela infantil? Explica lá mesmo como é que pensas manter-me cá dentro? Caso não te tenhas apercebido neste preciso momento instalei um bypass nas tuas seguranças e tenho o controle funcional de todas as portas. O lugar pertence-me e tu sabes bem disso! – exultou um triunfante B0rg.
- Posso dizer uma coisinha? – perguntou titubeante Bodak.
- Fala lá pá, mas se é para perguntar se eu já vi um Bodak podes ficar calado.
- Se tu tens o controle deste cruzador porque razão continua a I. A. activa?
- Pois. – interjectou Dragão Quântico.
- Ó pá, simples, pá! Quero que ela sinta tudo o que lhe vou fazer aos circuitos. Tenho umas velhas contas a ajustar. Tagarelice não faz mal nenhum, e é tudo o que ela pode fazer agora. – B0rg riu-se alto e bom som.
- Bem, nesse caso vou andando. – disse Bodak e começou a afastar-se.
- Um momento. Mais devagarinho se faz favor. Onde julgas tu que vais?
- Vou-me embora deste cruzador. Não tenho vontade nenhuma de ser entregue ao Supremo Tribunal de Tellus 3. Algum problema? – Bodak continuou a andar apenas para ser puxado, não muito gentilmente, por um apêndice extensível de B0rg. As garras metálicas cerraram-se no tecido de licra de Bodak juntamente com alguma carne fazendo com que este emitisse um uivo de dor. B0rg largou-o junto aos seus pés. Bodak virou a cara para cima defrontando-se com o cano escuro, silencioso e mortífero de uma pistola de raios. B0rg fez-lhe sinal para se levantar. Lentamente Bodak pôs-se de pé, sentindo a dor nas costas alastrar ao resto do corpo. Ainda mal se refizera da suspensão criogénica e agora aquilo! Aquele B0rg ia pagá-las. Nem sequer sabia o que era um Bodak...
B0rg aplicou umas algemas magnéticas aos pulsos de Bodak e empurrou-o para um canto. Tinha ainda muitos contentores para abrir. E o tal ajuste de contas! Mais tarde preocupar-se-ia com este humano. Emitiu uma ordem via rádio ao pequeno exército de drones que mantinha no interior da Eagle 1, acordando-os e convocando-os ao seu encontro. Dois minutos depois uma série de pequenos drones de pinças aceradas surgiram. Começou a emitir ordens e foi uma beleza ver os pequenos robots a serrarem contentores, a exporem os conteúdos, a seleccionarem o melhor material e a metê-lo no bojo para posteriormente o descarregarem nos porões da Eagle 1. B0rg deixou as operações em automático e recomeçou a procurar o caminho para a ponte.
Na escuridão dos corredores do cruzador, não muito longe dos porões de carga, escorria uma baba peçonhenta. Pendurado na curva do corredor o casulo vertia uma mistura de silicone e outros líquidos mais exóticos. A clandestina sentia as vibrações nas anteparas e pressentia o calor de um corpo orgânico. Eram as condições ideais para sair do casulo. Com uma garra rompeu a dura parede silicónica e deixou-se cair para o chão frio do corredor. Do corpo pendiam restos de placenta amarelada. Com uma língua anormalmente longa começou a lamber-se, torcendo-se em poses impossíveis, limpando todos os restos de alto teor nutriente. Tinha aplacado parte da fome que a atormentava, mas, tal como um cobrador de impostos, precisava de mais. Muito mais. Já limpa, ergueu-se. A pele era lisa e branca, os traços aproximavam-se duma antiga gravura japonesa de antes da Grande Diáspora, como se o rosto mal tivesse contornos, uns olhos oblíquos, seguidos dum nariz pequeno, feminino até, e uma boca vermelha de finos lábios. Das costas uma filigrana quase invisível tremia na leve brisa que percorria os corredores. As asas da clandestina desdobraram em leque. Do fundo da sua memória colectiva veio-lhe o que era e quem era. Luthien era o seu nome e a sua raça era a dos elfos.
E precisava de alimento.
Em passos leves desceu o corredor guiada pelo calor da vida orgânica que ardia na sua visão como um farol.
B0rg encontrou finalmente o elevador que o levou até à ponte, não sem antes ter injectado uns nanobots nas fibras ópticas para incitar o elevador a funcionar. A ponte, ao contrário do resto do cruzador, estava iluminada. Dragão Quântico tentou novamente dissuadi-lo dos seus propósitos nefastos:
- Ora bem, será que podíamos falar sobre isto duma forma civilizada? Talvez, quem sabe, chegar a um acordo proveitoso para ambas as partes? – a voz denotava um certo stress.
- Se julgas que vais conseguir falar-me ao coração, fica sabendo que há muito que foi substituído por uma válvula. Aliás é um modelo bastante bom. Sabes, tinha um ligeiro sopro e consegui resolver esse problema com esta maquineta fenomenal. O stress de andar sempre no espaço, as acelerações G súbitas, a imponderabilidade, os raios cósmicos, tudo isso não ajuda nada a saúde, sabias? Por isso que me fui deixando assimilar a este nível.
- Sim, compreendo. Também eu em tempos...
- Ah! Compreendes? Compreendes mesmo? – o sarcasmo na voz de B0rg era perfeitamente audível.
- Bem... Sim, percebo o que dizes. Porque também eu já fui orgânico!
- Eu sei que foste. Tu é que parece que já te esqueceste de quem eu sou! Porventura já te esqueceste da Batalha do Cinto de Órion?
- A Batalha do... – Dragão Quântico quedou-se mudo. A sua mente fervilhava com um rio de memórias, imagens da carnificina que fora o último assalto ao reduto dos secessionistas, e no meio das memórias vinha o seu acto de cobardia... Então aquele pirata era... Impossível! Da última vez que o vira ele estava preso nos destroços do Falcão do Miléniotm, com ar para umas horas, quanto muito. Ninguém poderia sobreviver. Ninguém! E contudo ali estava aquele cibernético confrontando-o com memórias de séculos. Memórias que ele tinha enterrado e tinha procurado esquecer. Seria possível?
Nesse preciso instante uma sirene começou a uivar e um ecrã iluminou-se mostrando a área dos porões. B0rg teve tempo de ver uma figura de pesadelo abater-se sobre o corpo manietado de Bodak antes de perceber o que se passava.
- Um elfo! Temos um elfo a bordo! Era só mesmo o que me faltava. – gritou Dragão Quântico, completamente fora de si. Toda a recente cadeia de acontecimentos era demais para os seus circuitos. Sentia um iminente overload a vir a toda a velocidade.
B0rg reagiu. De um pulo enfiou-se no elevador. Tinha tempo, pensou. O elfo teria começado a brincar com a presa como era habitual na raça. Ainda levaria muito até que o matasse. Se o matasse. Havia casos em que elfos tinham devorado as presas ainda vivas. B0rg esperava sinceramente que não fosse o caso deste. Ainda não sabia quem era aquele Bodak, mas para ir ser presente ao Supremo Tribunal era porque tinha a cabeça a prémio. E cabeças a prémio eram a sua especialidade. Cabeças a prémio rendiam muitos créditos.
Os intermináveis corredores pareciam ainda mais longos e tortuosos agora. Mas que raio, porque haviam eles de construir aqueles cruzadores como se fossem castelos góticos? Seria pelo simples prazer de verem a tripulação perder-se nos labirintos de corredores, passadiços e halls?
O núcleo do Dragão Quântico emitiu o INT13 para desligar o sistema. Retirou-se para o kernel mantendo apenas a voltagem necessária para pensar. E pensar...
Era o mais jovem cadete graduado da Armada. Era o motivo de orgulho de toda a família. Na cerimónia de graduação escolhera a alcunha: Dragão Quântico.
Na bancada dos visitantes o pai, a mãe e a namorada acenavam-lhe furiosamente. O pai de vez em quando tirava umas fotos mas na maior parte das vezes limitava-se a olhar embasbacado para toda a imensa mole de cadetes recém-graduados que enchiam a Praça do Império. Era um homem simples, vindo de um planeta de agricultores onde muito dificilmente se encontravam ajuntamentos de mais de uma centena de pessoas. Estar ali, na maior e mais importante praça de todo o Império Laranja, perante uma multidão de milhares de jovens, sentado numa bancada com outros tantos milhares de familiares e convidados era simplesmente aterrador para o simples homem. Quando violentamente instado pela esposa, levantava o braço acenando energicamente na direcção onde julgava estar o seu filho. Pelos altifalantes soava a poderosa voz do imperador discursando sobre as responsabilidades dos jovens cadetes, sobre o como o império contava com eles, sobre como eles eram a espinha dorsal daquele vasto império. No final do discurso uma formação de caças imperiais tonitroou os ares por sobre a praça criando bonitos efeitos de fumo colorido contra o céu azul e imenso. O céu para onde em breve o Dragão Quântico iria.
Após a cerimónia de graduação os cadetes puderam reencontrar-se com a família por breves momentos, antes de lhes ser destinado o cruzador de batalha onde iriam prestar serviço. A mãe, chorosa agarrou-se a ele, repetindo vezes e vezes sem conta, meu filho, meu querido filho. Algo embaraçado pela demonstração pública de afecto, Dragão Quântico fez o possível por se desembaraçar do apertado abraço da mãe apenas para ser estreitado nos fortes braços do pai que tentava a muito custo suster as lágrimas.
Por fim, mãe e pai afastaram-se alguns metros para o deixarem em maior intimidade com a namorada. Starita trouxera o vestido favorito dele. Uma túnica azul-marinho, aberta num dos lados, deixando entrever as belas formas femininas. Dragão Quântico abraçou-a e beijou-a longamente nos lábios. Starita corou, pois conseguia ver por cima do ombro dele os sorrisos malandros dos colegas de curso dele.
- Mando-te emails sempre que puder. – afiançou ele.
- Vou lê-los e guardá-los a todos, meu amor. – respondeu ela, um ligeiro brilho nos olhos que se arriscava a passar a lágrimas.
Ambos sabiam que a bordo dum cruzador de batalha muito dificilmente as comunicações privadas era possíveis. E naqueles tempos conturbados em que se ouvia falar de levantamentos anti-império nos sistemas da orla da galáxia, podia muito bem acontecer que ele ficasse incomunicável por longos e longos meses. Mas o amor deles era forte. Desde a mais tenra idade que os dois sabiam que os seus destinos estavam ligados. Starita e Dragão Quântico ficaram uns momentos de mãos nas mãos, olhando-se nos olhos. As despedidas eram sempre difíceis, mas aquela era a mais difícil de todas.
Nos altifalantes espalhados pela praça ouviu-se uma voz anunciar que iam ser publicadas as tripulações. Milhares de pés se encaminharam para junto dos painéis onde os nomes principiaram a desfilar.
Dragão Quântico rolou pelo ecrã acima, lentamente, muito lentamente. O coração do jovem cadete batia intensamente, o sangue zumbia-lhe nas têmporas. À frente da alcunha viu a nave que lhe fora destinada: Falcão do Miléniotm. Pertencia à Segunda Armada e era, segundo diziam os boatos, o cruzador mais rápido de toda a Galáxia. Não que isso tivesse muita importância visto que teria de calibrar a velocidade pela da nave mais lenta da Armada, mas sempre era uma vantagem se fosse necessário fugir em espaço normal.
Tinha ainda um par de horas antes de ter de se apresentar ao Comodoro. Iria aproveitá-las. Voltou para juntos dos pais e da Starita. Todos o aguardavam de caras sombrias. Sabiam que o seu tempo juntos estava perto do fim. Os interesses do Império estendiam-se a todos os cantos da galáxia e onde amanhã estaria a nave dele era uma incógnita. Os pais perceberam que os jovens precisavam daqueles últimos instantes sozinhos e após umas despedidas emotivas afastaram-se para o hovercarro.
Starita sentia um nó na garganta. Queria falar. Queria dizer tudo, de chofre. Todo o acumular de experiências vividas naqueles poucos anos em que foram namorados, todos os momentos bons que passaram juntos, tudo lhe desaguou na cabeça como uma cascata. Mas a boca parecia grudada e as palavras não se formavam. Ele, por seu lado, fazia um esforço por não chorar, mantendo os olhos muito abertos, pensando em como ela era bonita. Acabaram por se beijar. Por todo o lado a multidão passava, como um rio de encontro a uma rocha. O casal vivia o que pensavam serem os últimos momentos juntos.
Todo o processo de obtenção da guia de marcha e de apresentação ao Comodoro passou sem que Dragão Quântico tivesse a menor ideia do que acontecera. No seu espírito apenas revivia vez após vez aquele último beijo, aquele último carinho, aquele último olhar. Sentia-se como que a viver numa neblina que não o deixava ver mais do que quatro passos à frente. Só quando se dirigiu para o camarote é que a pouco e pouco voltou à realidade. À dura realidade. O seu companheiro de camarote já ocupara o beliche superior pelo que lhe restou preparar o inferior. Tanto melhor, já que detestava alturas.
- Chamo-me Ethan. E tu és?
- Dragão Quântico. – foi a resposta lacónica.
Ethan pressentiu que o humor do seu companheiro não estava no seu melhor e não insistiu em fazer conversa. Voltou a deitar-se no beliche e colocou os auscultadores. Em breve um ruído crepitante enchia o pequeno camarote e não tardou muito a que a voz de Ethan se fizesse ouvir trauteando os versos da música. Dragão Quântico olhou desgostoso para o companheiro, mas preferiu não dizer nada. Também ele acabou por se deitar. Para se distrair abriu o PC Tablete e começou a trabalhar no #5 da e-zine.
À hora do jantar tiveram um discurso do Comodoro. Exaltou-os, chamou-os de elite, apelou-lhes ao planetarismo e inculcou-lhes a ideia de que a bordo havia duas hierarquias. Ele e Deus. Os cadetes terminaram aplaudindo, mas se foi o discurso que aplaudiram ou o lauto banquete que lhes foi servido logo de imediato nunca se soube muito bem.
Ethan ficou sentado ao lado dele e aparentemente já fizera mais conhecidos a bordo, acabando por o apresentar como se fosse o seu padrinho de bordo.
- Este aqui de poucas falas, - disse apontando com o garfo para um rapaz alto e entroncado, - é o B0rg. Se precisares de algum software sacado à pala é só falares com ele. Aquele ali, - e apontou para outro rapaz, louro de olhos verdes, magro de cara e constituição, - é o LordK. Tudo o que quiseres saber sobre underground e cenas assim é só perguntares-lhe. E este, - disse virando-se para o lado, - é o Wink. É um maluco por música de Antes da Grande Diáspora
- Mas atenção não é qualquer música, note-se. – interviu Wink. – O que eu curto mesmo são as cenas disco. – E de imediato se pôs a trautear: You make me feel like dancing, I wanna dance the night away...
- ‘Tá bem. ‘Tá bem, já percebemos – ripostou Ethan, antes que o rapazito chamasse a atenção das outras mesas.
Dragão Quântico apresentou-se e apertou a mão civilizadamente a todos eles. Afinal muitos deles também deviam estar a passar pelo mesmo que ele. Separados da família, das namoradas e rumo a um destino incerto.
- Alguém sabe qual o plano de voo? – perguntou LordK.
Várias cabeças abanaram, mas um grumete que por ali passava, empurrando um carrinho carregado até cima com pratos sujos, ouviu e debruçando-se para a mesa confidenciou:
- Ouvi o Comodoro falar com o Capitão e parece que vamos para o meio da acção. Uma Armada Secessionista está a juntar-se no Cinto de Órion e é mesmo para lá que nós vamos.
E satisfeito por ter prendido a curiosidade dos cadetes seguiu caminho assobiando levemente um tema musical muito em voga que falava de dor e morte.
Os rapazes trocaram olhares apreensivos. Se fossem entrar em batalha estariam preparados? Uma coisa eram os simuladores da Academia, outra era a dura e fria realidade do espaço. Mas em breve saberiam.
De certeza que o Capitão não os iria manter muito mais tempo na ignorância.
O núcleo, que em tempos fora um jovem cadete com o brilho das estrelas nos olhos e a recordação da amada no coração, voltou a atenção para os assuntos prementes a bordo do cruzador.
No porão de carga B0rg confrontava a elfa. Do alto dos seus dois metros de altura a elfa desferia golpes de garras em riste, rasgando o ar em silvos afiados. B0rg desviava-se o melhor possível dos golpes, mas já uma mão o atingira no fato deixando três rasgões à altura do peito. B0rg não a neutralizara por completo porque queria capturá-la viva. Havia espeluncas espalhadas por todo o Sector de Sol III que pagariam muito bem por um membro da raça élfica, ainda para mais um membro da raça feminina. Desviando-se dum golpe do espigão na ponta da cauda, B0rg mediu as distâncias e lançou a rede de monofilamento de tungsténio maleável. A rede cobriu a elfa tolhendo-lhe os movimentos. De imediato B0rg aproximou-se e injectou-lhe uma substância narcótica no corpo. Luthien abateu-se no chão, inanimada. B0rg viu que Bodak estava caído a um canto. De um pulo pôs-se junto a ele. O humano tinha vários cortes na face, mas fora isso e o facto de ter desmaiado, provavelmente de susto a acreditar pela mancha húmida que lhe alastrava pelas pernas abaixo, parecia estar bem.
Os drones tinham terminado de carregar os últimos itens e B0rg enviou os pedidos para seis deles arrastarem a elfa para dentro do sarcófago criogénico. Depois de reprogramar os códigos de criogenização adaptando-os à estrutura biológica da elfa, fechou os selos e de imediato o sarcófago iniciou o processo de conservação em animação suspensa. Uma fila de luzinhas verdes acendeu-se na consola exterior do sarcófago. Os drones carregaram o sarcófago para bordo da Eagle 1. B0rg pegou em Bodak, lançou-o sobre as costas e encaminhou-se também para a sua nave. Ainda ouviu Bodak resmungar em plena inconsciência: Mas já viste um Bodak?
O que deveria fazer à I. A. não era agora tão claro. Quando abordara o cruzador tinha tudo planeado, mas agora... No fundo sentia pena do seu antigo companheiro de armas. Afinal dos dois fora ele, B0rg, quem melhor se safara. Arrepiava-o pensar que a sua consciência pudesse vir um dia a ficar eternamente presa num processador e num monte de memórias estáticas. Era uma opção que, paradoxalmente tendo em conta o seu próprio processo de assimilação cibernética, o assustava deveras. Pelo menos enquanto se encontrava infectado com o vírus da assimilação sempre ia conservando uma certa mobilidade e, porque não, personalidade. Como inteligência artificial tudo o que lhe restaria seriam as memórias, para sempre fixadas no momento em que fosse descarregado ao núcleo do sistema que o iria albergar. A partir daí a sua vida seria uma infinita sucessão de backups e de limpezas periódicas dos bancos de memória. Desejava sentir o gosto doce vingança. Queria acima de tudo que Dragão Quântico experimentasse a mesma agonia por que ele passara naquelas horas, que julgara as últimas da sua vida, quando a Falcão do Miléniotm ficara inerte, à mercê dos funis de energia das naves atacantes, e Dragão Quântico o abandonara, usando a cápsula de escape para fugir da nave que a pouco e pouco era esventrada pelas lanças energéticas inimigas. Lembrava-se da expressão de Dragão Quântico quando vira que a cápsula apenas podia suportar dois tripulantes. Lembrava-se da dor lancinante do raio de atordoar disparado por Dragão Quântico. Lembrava-se de ver, por entre as lágrimas provocadas pela incredulidade e pela dor, Dragão Quântico empurrar Starita para dentro da cápsula entrar de seguida e sem um olhar na sua direcção, selar a comporta. Queria o gosto doce da vingança, mas cada vez mais pensava que a mesma saber-lhe-ia a amargo.
Quando entrou na Eagle 1, B0rg lançou um último olhar para a câmara vídeo de vigilância do portaló e ergueu o punho cerrando os dedos à excepção do médio.
- Fica bem, meu! – foi tudo o que disse antes de trancar a porta e mandar recolher a manga.
Via rádio iniciou o processo de descolagem, libertando as linhas de tensão hiper-magnética e aquecendo as turbinas, enquanto procurava uma rede de aceleração G para colocar o corpo inerte e mal-cheiroso de Bodak.
A bordo do Cruzador o núcleo da I.A. reactivou as funções primárias. De imediato fez um inventário dos estragos e a conclusão a que chegou não foi nada optimista. Além do mais B0rg enfiara-lhe um vírus nos sistemas operativos secundários que de 30 em 30 segundos obrigavam a fazer reboot aos sistemas ao mesmo tempo que dos altifalantes saia em tom sarcástico a voz pré-gravada dele gritando a plenos pulmões que a INFORMAÇÃO É LIVRE!
Numa palavra estava perdido! Os seus empregadores iriam cobrar-lhe bem caro a perda do material, mas acima de tudo temia o que as Autoridades Imperiais lhe fariam quando soubessem que Bodak tinha sido raptado. No mínimo seria afastado do serviço activo, a licença cassada e até podia enfrentar a possibilidade de ser desmantelado. Na pior das hipóteses poderia ser sujeito a uma limpeza total dos bancos de memória. Todo o seu ego, a sua Id, desapareceria para sempre. Amargurada a I. A. reflectiu sobre o que fazer em seguida. A resposta veio-lhe na forma duma comunicação da Estação Orbital de Plutão. Uma voz serena apresentou-se como o Director da Estação, Z era o seu nome, e desejava saber se o cruzador já iniciara a ejecção dos contentores que lhes tinham sido destinados.
Dragão Quântico emitiu rapidamente os códigos de S.O.S. Agarrou-se à tábua de salvação que era aquela inesperada comunicação. Se o Director da Estação actuasse rapidamente ainda havia uma remota hipótese de capturar o pirata.
Na sala de comando da estação Z ponderou por breves instantes no significado do pedido de auxílio. Sem os víveres a estação ficaria em situação precária, mas por outro lado não se lhe afigurava possível conseguir capturar um pirata como B0rg. A menos que metesse ao barulho o seu melhor piloto. Ligou o intercomunicador e codificou o número da cabine de Moon Princess. Uma voz, que não escondia que acabara de ser rudemente retirada do sono, perguntou o que queria.
- Fala o Director. Temos uma emergência e precisamos dos seus serviços.
- Isso vai depender.
- Depender do quê?
- Do pagamento e do tipo de serviço.
- O pagamento é o tabelado, minha menina, mais um bónus adicional.
- Ok. E qual é o serviço? – Moon Princess não gostou muito do menina, mas deixou isso para mais tarde.
- Captura de um pirata.
- Ai sim? Vivo ou morto?
- Tanto faz. É imperativo é que a nave fique intocada.
- Isso vai ser difícil.
- Eu sei! Se fosse fácil eu próprio fazia e ficava com o prémio. – Z irritava-se por vezes com esta caçadora de prémios, mas no fundo gostava da rapariga. Tinha o seu quê de rebelde que o relembrava dele próprio há muitos anos atrás.
- Talvez se eu souber qual o valor do bónus adicional...
- Ouça menina, o pirata está neste preciso instante a sair do nosso quadrante e dentro de momentos estará fora de alcance. Não acha que seria melhor discutir isso depois?
- Eu não disse que aceitava...
Z suspirou e pensou que nos bons velhos tempos nada disto seria possível. Mas a corrupção alastrava a todos os níveis e as estações orbitais a pouco e pouco foram sendo albergue de todo o tipo de gente. Desde batoteiros profissionais, a caçadores de prémios. E ainda para mais tinha de ser simpático com esta rapariga visto ser a filha de um oficial muito bem colocado no Império. Mas que treta! A custo lá disse quanto seria o pagamento e a caçadora acabou por concordar enviando-lhe um contrato standard para ser assinado.
Momentos depois o Viper 5 lançou-se do hangar em perseguição cerrada. A bordo Moon Princess ajustou o capacete de VR e como por magia surgiu projectada no espaço à sua frente uma pequena carta astronómica mostrando o seu vector de aproximação à Eagle 1. Um scan rápido ao inimigo revelou-lhe as assinaturas das principais armas de defesa e ataque, bem como a potência dos escudos deflectores. Este ia ser um osso duro de roer. Ainda para mais tinha de deixar a nave o mais possível intacta. Devia ter alguma carga preciosa a bordo. Tinha de verificar in loco do que se tratava. Aquele burocrata do Z não a ia enganar no bónus tão facilmente como pensava. Abriu a potência máxima aos turbo-reactores e começou gradualmente a ganhar terreno.
B0rg foi alertado pelos sensores de que estava a ser seguido. Com os sistemas de alvo pintou a Viper 5 e lançou dois mísseis guiados. A Viper iniciou manobras de evasão e largou ECMs confundindo os mísseis que rebentaram antes de tempo. Raios! Era bom aquele piloto, pensou B0rg.
Mudou de manobra. Era altura de algum cloaking. Activou a bateria secundária e começou a energizar o escudo de manto. No preciso instante em que recebeu o sinal de que o escudo estava carregado, desligou todos os sistemas da Eagle 1 e activou o escudo. Desapareceu efectivamente de todos os sistemas de rastreio da Viper.
Moon Princess ficou atónita. Não sabia que uma navezeca daquele tamanho podia ter cloaking. Tinha de
falar urgentemente com o seu mecânico. Queria um sistema daqueles para a Viper.
Mas agora tinha de encontrar o rastro do pirata. Sentia-se indefesa ali às voltas no espaço sem o conseguir localizar. Alterou o rastreio do scanner para detectar sub-partículas atómicas com assinatura de motores de fusão e o scanner presenteou-a com uns ténues traços que se dissipavam rapidamente. Raciocinando que o pirata desligara todos os sistemas passíveis de emitir ondas, o vector de afastamento deveria continuar na mesma direcção e com a mesma magnitude pelo que não se afastaria muito duma certa coordenada.
Moon Princess marcou a rota no computador direccional de bordo, ignorando que estava prestes a embarcar na maior aventura da sua vida.
[b]Traição e honra[/b]
O buraco-de-verme criado pelo couraçado M. F. Leite alargou-se o suficiente para o deixar entrar na esfera de influência do PCF #411. Alertado pelos scanners o comandante do posto aguardava a comunicação do couraçado. No ecrã da Sala de Comando e Controlo surgiu a face impassível de LadyHawke. A mais jovem Comodoro de toda a frota imperial subira nos escalões militares graças aos feitos heróicos perpetrados durante a Guerra Secessionista, onde fora uma das mais activas oficiais da Armada Imperial. Nas cerimónias em que envergava o traje de gala, a quantidade de medalhas, citações e louvores que adornavam a frente do seu uniforme fariam corar de inveja muito oficial mais antigo. Viera propositadamente da Nuvem de Magalhães para ser testemunha de acusação no processo criminal movido a Bodak.
- Comandante, espero muito sinceramente que o seu Posto esteja em condições para o couraçado acostar.
Tal como previamente o informei, o couraçado sofre de stress do metal em várias partes e não pretendo levá-lo para perto da atmosfera de Tellus 3. Farei o transbordo com um vaivém que está já a caminho vindo do cabo da Roca. Entretanto e como as reparações são fáceis de efectuar e como penso que até mesmo a sua equipa poderá ter competência necessária para as efectuar, deixarei o couraçado entregue nas suas mãos, embora sobre supervisão da Imediato Starita. Não estou em crer que o julgamento vá demorar muito tempo por isso convém que a sua equipa se ponha a trabalhar o mais rapidamente possível. – LadyHawke não se deu ao incómodo de esperar pela resposta cortando a comunicação abruptamente.
O comandante LoStAliEn engoliu em seco. Era sempre difícil lidar com estas figuras. Um deslize seu e lá ia ele a caminho das minas de sal de Kessel. Tinha de escolher criteriosamente a equipa de reparação. E tinha de mandar preparar uma manga de ligação e ainda tinha de arranjar tempo para verificar pessoalmente os aposentos para a Comodoro. Tanta coisa para fazer e tão pouco tempo. O ordenado não compensava. Não compensava mesmo nada! Abanando a cabeça e sentindo o peso da responsabilidade sobre os ombros saiu da sala dando instruções sub-vocais para os diversos chefes de sector. O tempo urgia! Delegou na equipa de Hari Seldon a responsabilidade da reparação do couraçado. Enquanto se encaminhava para os aposentos que seriam os da Comodoro, pensava se Seldon estaria à altura. Teria de estar porque as outras duas equipas de reparação estavam de momento empregues em reparações rotineiras nos satélites do PCF que constituíam a cintura de observação da responsabilidade do seu Posto. Percorreu os corredores brancos e silenciosos, à excepção do omnipresente zumbido do ar condicionado. Por uma das vigias podia-se ver a imensa mole do couraçado a aproximar-se, vagamente iluminado numa face pelo distante Sol, o corpo eriçado de antenas, telescópios, módulos habitacionais e de armazém, canos de canhões de anti-matéria e de plasma e tubos de torpedos e mísseis. Estugou o passo e reviu pela enésima vez a lista mental de coisas que tinha de preparar, revistar, organizar e de uma forma geral coordenar para que nada estivesse fora do lugar e não houvesse a mínima hipótese de repreensão por parte da exigente Comodoro.
Menos de meia-hora depois LoStAliEn aguardava ansiosamente na saleta destinada a receber as altas patentes da Armada Imperial que a Comodoro passasse pela manga de ligação esticada entre o posto e o couraçado. Um ligeiro chiar e um pequeno estalido no osso interno do ouvido foi o sinal da despressurização da ante-câmara que o alertaram que a Comodoro se preparava para emergir na saleta. Empertigou-se e tossicou levemente preparando-se para enfrentar a inspecção acerada.
LadyHawke saiu pelas portas estanques da câmara de descompressão resplandecente no seu uniforme de trabalho n.º 2. Mesmo sem as inúmeras condecorações a cobrirem-lhe o peito o porte altivo impunha um ar de respeito raras vezes alcançado por outros oficiais superiores. LoStAliEn fez uma continência impecavelmente milimétrica e apresentou-se:
- Comandante LoStAliEn do Posto de Controlo Fronteiriço # 411 apresenta-se. Em nome de toda a tripulação desejo-lhe uma óptima estadia. Longa vida ao Imperador. – Esperou protocolarmente que LadyHawke respondesse à continência. Sentia os olhos dela percorrerem-no como um par de cobras que se preparavam para o bote.
- Longa vida ao Imperador. Vejo que mantém um Posto em condições. Espero que o resto não me desiluda. Contudo não estou aqui para proceder a uma inspecção mas sim para fazer o transbordo para Tellus 3, portanto agradecia que me guiasse sem mais delongas aos meus aposentos designados.
Sairam ambos da saleta e no exterior foram recebidos pela escolta oficial devida ao posto de Comodoro. Os quatro guardas apresentaram armas e seguiram depois em formação atrás de Lostalien e Ladyhawke, enquanto estes percorriam o piso até ao elevador que os levaria ao piso habitacional. Pelo caminho Lostalien foi lançando uns sub-reptícios olhares à Comodoro, tentando adivinhar o que lhe iria na mente. Como principal testemunha de acusação de Bodak, seria a peça fundamental no processo que levaria o ex-líder rebelde ao cadafalso. Não que o Império necessitasse de uma acusação muito forte para proceder à execução. Este era um daqueles processos-fantoche que estava à partida ganho pelo Império, mas para as grandes massas populacionais havia que manter uma aparência de justiça equilibrada.
O elevador largou-os no piso habitacional e dali até à suite previamente preparada para acolher a Comodoro foi um instante. De um lado e doutro as largas vigias mostravam a beleza fria do espaço. As luzes no corredor estavam diminuídas ao máximo possível para não obscurecerem a pálida luz das estrelas da Via Láctea. Quase fora de vista desenhava-se o arco do satélite natural de Tellus 3. Em tempos um mundo árido e cinzento, o satélite era agora atravessado por inúmeras luzes dos complexos habitacionais e da míriade de laboratórios farmacêuticos que tinham estabelecido base permanente na pequena lua. Do Posto divisava-se perfeitamente a cratera de Tycho. Lostalien pensou no que estaria fazendo a sua filha naquele preciso instante. Estaria a rir-se vendo as transmissões do Cartun Netvork? Ou brincaria com a pequena brodningnag vinda do distante mundo de Alpha Centauri? Um semi-sorriso desenhou-se na face mas Lostalien recompôs-se rapidamente. A Comodoro não tinha família e decerto não compreenderia que um pai sorrisse ao recordar-se da filha que não via à meses.
LadyHawke avaliou num olhar rápido e certeiro as instalações provisórias que lhe tinham sido destinadas a bordo do posto de controlo. Era um camarote algo espartano, apenas o necessário para uma acomodação condigna e confortável, sem luxos desnecessários, uma larga cama impecavelmente feita, um armário de roupa preparado para inércia, um boudouir com uma pequena banqueta e por uma porta passava-se à casa de banho, pequena mas suficiente. Acima de tudo era uma suite espaçosa, o que lhe agradava deveras. Detestava os confinamentos restritos da maior parte das astronaves. O comandante pelos vistos informara-se sobre as suas preferências pessoais. Aquela atenção aos seus gostos se por um lado demonstrava iniciativa, por outro lado podia ser um sinal de que era demasiado inquisitivo. Tinha de o manter debaixo de olho. Não chegara até ali por ser descuidada e não fazia a menor intenção de começar a sê-lo, nem muito menos de ser apanhada por um mero comandante de um Posto de Controlo. Virando-se para o comandante e para a escolta disse-lhes que estava tudo muito bem e dispensou-os. Fechou a porta mudando de imediato o código de segurança. Era uma precaução simples que, contudo, já lhe salvara a pele por várias vezes.
Com um suspiro sentou-se ligou o PC Tablete, sintonizando a CMM para ler e ouvir as mais recentes notícias. Tinha ainda umas duas horas até à altura de embarcar no vaivém. Iria aproveitá-las para se por a par da situação política em Tellus 3.
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Maelwys encaminhou-se o mais naturalmente possível ao armeiro. Revira vezes sem conta o que se preparava para fazer, tantas vezes que quase poderia executar esta parte da missão de olhos fechados. No bolso da farda tinha cuidadosamente dobrada o impresso que lhe facultaria o acesso à pistola-laser. As armas a bordo do PCF eram apenas permitidas aos oficiais de dia e às escoltas e restantes detalhes de serviço. Conseguira falsificar um impresso que o dava como estando incorporado na escala de serviço do dia para a PM. Apenas teria de explicar ao sargento porque raios só agora ia levantar a arma, quando supostamente já entrara de serviço.
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A equipa de reparações liderada por Hari Seldon saiu para EVA. Os sete elementos, presos uns aos outros por cabos tênseis, avançavam lentamente, pois a magnetização/desmagnetização das botas de trabalho exigia que os passos fossem cuidadosamente estudados. As botas projectadas pela Reebota eram uma maravilha da engenharia mas extremamente desconfortáveis de usar, além de caríssimas, no entanto eram as únicas preparadas para trabalhos daquele tipo em que era imperativo segurar os astronautas ao casco metálicos das astronaves. O clanque-clanque metálico provocado pelas botas ressoava dentro dos capacetes de cada um dos técnicos de manutenção, mas um dos elementos tivera a ideia de passar pelo circuito rádio umas gravações do último bootleg de Frank Zappa e ao irritante som das botas juntava-se também o ainda mais irritante experimentalismo do músico.
No visor do capacete de Hari projectava-se um esquema do couraçado com os pontos fracos assinalados. Hari guiou a equipa para o primeiro deles e sobrepondo-se à cacofonia guitarrística de Zappa, explicou à equipa os procedimentos a elaborar no casco. Os outros seis técnicos deitaram-se ao trabalho, ligando maçaricos de laser e desdobrando folhas de liga metálica ultra-fléxivel que estenderam sobre as zonas enfraquecidas. Satisfeito com o início dos trabalhos, Hari soltou o cabo que o prendia à equipa e continuou a seguir a estrutura exterior do couraçado até perto dum ponto que estava representado a laranja vivo no esquema. Olhando para trás para ter a certeza de que estava fora do alcande visual da equipa, pousou a mala magnética sobre o casco, abriu-a e retirou cuidadosamente a bomba. Com extremo cuidado segurou-a na antepara com grampos magnéticos, e com um torque abriu uma placa na antepara expondo uma motherboard integrante de parte dos circuitos electrónicos do couraçado. Com um conjunto de fios eléctricos ligou a bomba aos circuitos. Quando terminou suava tanto que o fato iniciara uma ventilação extra para dissipar o vapor na viseira do capacete. Fechou a maleta e voltou para junto da equipa que estava prestes a terminar a reparação naquele ponto da nave. Inspeccionou a reparação, pensando na ironia de estar a verificar a integridade duma reparação quando acabara de sabotar a nave, colocou a punção de inspecção e guiou a equipa para o ponto seguinte no mapa de intervenções de manutenção que mantinha activo no display do visor. Enquanto percorria lentamente o casco do couraçado, desviando-se das antenas e outro obstáculos que pejavam a superfície dele pensava que seria bom se conseguisse confirmação que Maelwys tinha conseguido cumprir a parte dele dentro do vaivém. Mas tal era impossível. Restava-lhe acreditar nos recursos do jovem camarada.
**
No preciso momento em que Hari ligava o cronómetro da bomba, Maelwys neutralizava com um forte golpe na nuca o legítimo piloto do vaivém e agora encontrava-se a arrastar o corpo para dentro de um armário de manutenção. Com o laser atenuado soldou a fechadura do armário prevenindo assim inoportunas descobertas ou saídas de surpresa do piloto armado em herói de circunstância.
Em seguida sentou-se na cadeira de piloto e rapidamente verificou os sistemas internos do vaivém. Daí a pouco pode ver a Comodoro a ser acompanhada até à rampa por uma escolta e pelo comandante do posto. Como seria de esperar da velha harpia despediu-se secamente do comandante e subiu de imediato para a cabina, indo directamente para junto dele. Passou os olhos pelas consolas navigacionais, perscrutou-o aceradamente e aparentemente satisfeita com o que viu foi sentar-se no lugar do passageiro sem lhe dirigir uma palavra que fosse. Sentou-se numa cadeira de aceleração e cobriu o corpo com a rede de aceleração. Maelwys certificou-se que todos os instrumentos estavam no verde, pediu autorização para ligar os motores e após ouvir a voz pré-gravada do Posto de Controlo informar que tinha autorização para prosseguir injectou o hidrogénio nos motores e sentiu o leve impulso que lhe garantiu que saiam da doca do PCF #411. Pelo canto do olho viu a mole imensa do couraçado M.F. Leite. Sorriu maliciosamente. Em breve aquela orgulhosa nave de combate que tantas baixas causara nos rebeldes não seria mais que pó. E ali consigo seguia indefesa a Comodoro. O plano seguia às mil maravilhas. Apenas faltava um pormenor. LostAlien ainda não os contactara. Será que tinha encontrado dificuldades? A actuação dele era essencial para o sucesso da missão. Talvez ainda estivesse impedido de os contactar. As recentes tempestades rádio do Sol III tinham afectado grandemente as comunicações. Podia dar-se o caso de estar incomunicável, ou... A outra hipótese não convinha agora contemplar. Não ia de todo ao encontro dos secretos desejos de Maelwys.
Vendo que o vaivém estava livre dos portalós das docas imprimiu mais potência aos motores começando a, gradualmente, aumentar os G’s. Sentiu o corpo comprimir-se contra o estofo da cadeira e pelo espelho por cima das consolas viu a Comodoro a ser também ela sujeita à aceleração. Perfeito! Inseriu no computador de bordo as novas coordenadas apagando as prévias. De imediato soou um pequeno alarme na consola navigacional e a mesma voz pré-gravada vinda do Posto informou-o do desvio da rota pré-marcada. Ignorando os avisos Maelwys abriu as goelas aos motores deixando a gravidade esmagá-lo como um gigantesco martelo desferido no peito. A voz adquiriu tons frenéticos e de repente foi susbtituída pela voz do comandante que em tom severo exigia que ele explicasse aquela súbita alteração. Maelwys cortou o contacto. Pelo espelho viu que a Comodoro se debatia na cama de aceleração tentanto, em vão, libertar-se da rede. Maelwys sorriu-lhe e piscou-lhe o olho. A força dos Gs era agora tão elevada que os músculos faciais estavam distorcidos e a voz quase impossibilitada de sair mas ainda assim LadyHawke grasnou uma ordem:
- Solte-me, imediatamente!
- Se eu a soltar o seu nome vai passar a ser Bolinha. Tipo bolinha de sangue na antepara. Não sei se deu para perceber que está debaixo de 7 G’s! – custou responder mas só o prazer de poder retorquir compensou o esforço.
LadyHawke fervilhava de possibilidades. Tinha uma adaga presa ao pulso esquerdo. Seria questão de segundos enquanto cortava a rede, mas como vencer os Gs? Tinha de esperar e ver o que queria aquele raptor dela. Se o rapazito pensava que ela estava indefesa ia ter um triste acordar. Aliás já não seria o primeiro a subestimar as capacidades dela, por apenas a avaliar pelo aspecto físico. Os homens eram todos iguais. Viam uma mulher e logo pensavam que eram superiores em tudo. Basbaques.
Maelwys reparou que o couraçado iniciara a manobra para os seguir.
A explosão foi dum brilho tal que forçou os filtros das vigias a polarizarem. LadyHawke percebeu pelo brilho e pela subsequente onda de choque que o seu couraçado era agora uma memória. Dominou a raiva o melhor que pôde. Eles iriam pagar bem caro aquela afronta. Tinha apenas de manter a cabeça fria. Pensou na sua tripulação e acima de tudo na Imediato Starita por quem chegara a nutrir uma certa dose de afecto, pensando que um dia a jovem mereceria um comando próprio. Todos mortos, sem honra nem glória. Vítimas de um cobarde ataque de sabotadores terroristas. Malditos fossem. Haviam de pagar tudo.
E com juros!
O vaivém não levou muito tempo a atingir o ponto de rendezvous. Aguardava-o um stealth destroyer de hangar liberto pronto a acomodar o vaivém transfuga. Maelwys fez a aproximação final em modo manual. Gostava de sentir a nave obedecer aos seus comandos nos joysticks. Mal pousou e abriu a rampa uma hoste de guardas penetrou no interior do vaivém cercando a Comodoro. O oficial que os comandava sorriu para Maelwys.
- Como vais camarada? – perguntou enquanto indicava aos soldados para soltarem a Comodoro.
- Bem, camarada Turinturambar. Sempre bem e cada vez melhor.
Os dois rebeldes abraçaram-se.
- E o Hari? Safou-se? – indagou Turinturambar.
- O plano era meter-se num vaivém de escape antes que o couraçado iniciasse a perseguição. Não confirmei se saiu algum do Posto de Controlo. Será melhor tentar localizar o sinal IFF dele.
- OK. Vou já tratar disso. – Turinturambar chegou-se para o lado e deu umas ordens para o mini-rádio de lapela. Depois virou-se para enfrentar LadyHawke que olhava impassível para a cena.
- Comodoro, a partir deste momento considere-se prisioneira de guerra da Frente de Libertação Unida. Será tratada de acordo com a Convenção de Genebra, ratificada pelo Conselho Galáctico na Lei n.º 20/89. E pode dar-se por feliz já que é mais do que o tratamento que os imperialistas deram aos meus camaradas que tiveram o infortúnio de serem capturados.
- De mim não levará cooperação alguma. Como prisioneiro de guerra apenas sou obrigado a dizer-lhe o meu número, patente e companhia. E como isso já você sabe... – a resposta sarcástica de LadyHawke pareceu divertir Turinturambar que não esperava outra coisa dela.
- Levem-na daqui para fora. – ordenou aos soldados. Voltando-se para Maelwys. – Queres acompanhar-me até à ponte? Quero apresentar-te a uma pessoa.
- Certo. Vamos indo.
Os dois rebeldes sairam do vaivém e passado pouco tempo os sensores não sentindo a presença de nenhum ser vivo a bordo apagaram as luzes mergulhando-a na quase completa escuridão. Apenas uma luzinha vermelha piscava intermitentemente na consola navigacional, emitindo impulsos que enviavam as coordenadas do vaivém para quem se desse ao trabalho de escutar em determinada frequência.
Na ponte Maelwys mal teve tempo de sair do elevador, sendo de imediato apertado num forte abraço por Mara. Apanhado de surpresa o jovem rebelde tentou a custo retribuir os imensos beijos que a rapariga lhe depositava nas faces. Turinturambar observava de lado, visivelmente satisfeito com a cara de espanto de Maelwys.
- Mas, mas... tu aqui? – conseguiu por fim balbuciar Maelwys quando Mara o soltou.
- Sim! Não é incrível? Estava descansada em Rigel Delta IV quando me informaram desta missão. A princípio ainda estive relutante em aceitar, mas depois mencionaram o teu nome... e como poderia resistir? – explicou a rapariga com um leve sorriro matreiro.
- Estava longe de te imaginar por estas bandas. – voltou-se para Turinturambar – E tu, meu malandro, não me disseste nada! E aposto que já sabias de tudo.
- Claro que sabia, mas achas que te ia dizer alguma coisa antes da missão efectuada? Ainda largavas tudo para vires cá ter mais rápido.
- Nisso tens razão. Se eu adivinhasse que a minha noiva estava cá... tenho a impressão que fazia eu tudo, desde a sabotagem até ao rapto, só para ter a certeza de que me despachava.
- Então e agora que temos a Comodoro? – perguntou Mara.
- Agora estabelecemos ligação com o Império e fazemos a troca de prisioneiros. LadyHawke por Bodak. Parece-me uma troca justa. – esclareceu Turinturambar.
- Mais que justa! – interviu Maelwys – Bodak vale por mil Comodoros, mesmo que sejam do calibre de LadyHawke.
- Sim, camarada, resta ver se o Império também pensa assim. Porque se assim for vamos ver-nos em maus lençóis. Esperemos que abram mão dele por precisarem da Comodoro, mais do que um mero julgamento, cujo principal efeito será mais mediático que outra coisa. – Turinturambar deixou por dizer que as negociações para a troca de prisioneiros ainda não tinham sido abertas, por nenhum dos lados.
- Chega de política! Está na hora de um bocado de R&R. – Mara puxou Maelwys de volta ao elevador. – Vens também Turinturambar?
- Não, para já não. Vão lá os pombinhos que eu ainda tenho umas pontas soltas para atar.
Depois de Mara e Maelwys sairem, decerto em direcção à cafetaria, Turinturambar foi para junto do técnico-operador de comunicações.
- Já veio algum sinal? – inquiriu.
- Ainda nada. – o técnico indicou-lhe os monitores de frequência vazios.
- Continua a trabalhar nisso. Temos de ter a confirmação do QG. E continua a procurar o IFF do Hari. – afastou-se deixando o técnico perscrutar as ondas rádio. O elevador chegou e abriu-se com o característico som de laranjas a serem pisadas. Com um último olhar Turinturambar saiu da ponte. Estava na altura de fazer uma visita à Comodoro.
**
Hari agarrou-se à cabeça que parecia um melão inchado ao sol. Por entre olhos nublados viu o vulto da oficial que agarrava o bastão de basebol com que lhe batera em posição de voltar a dar-lhe uma cacetada caso ele se mexesse demasiado depressa. Mas ele estava longe de ter vontade de se mexer ou de fazer fosse o que fosse senão agarrar-se à cabeça. Lançou um olhar suplicante e gemeu baixinho.
- Levanta-te, cão rebelde! – Starita pôs todo o peso autoritário que conseguiu na voz, embora ainda tremesse do jaunt. Relembrou os micro-segundos que antecederam a tragédia quando sentiu o chão vibrar com as sucessivas explosões pelo couraçado fora. Correra a um portaló e vira no exterior o Posto começar a ser obliterado com explosões de simpatia e ao longe descobriu a forma esguia dum vaivém que se esgueirava a coberto da confusão. Quase instintivamente pulou. E viu-se dentro do vaivém ouvindo o cão que agora rastejava a seus pés rir alto e bom som enquanto, ignorante da sua presença, observava por vários monitores a completa destruição do couraçado e do Posto de Controle. Pegara na primeira coisa que lhe viera à mão, que sucedeu ser o bastão de basebol assinado por Michael Collins que custara uma pipa de massa a Hari numa loja especializada em memorabilia das eras pré-Diáspora. O peso equilibrado do bastão oferecera-lhe uma dose de confiança e não hesitou em usá-lo na cabeça do rebelde.
Mesmo instado pela voz autoritária, Hari Seldon, o cão rebelde, não tinha como obedecer. As pernas pareciam feitas de borracha mole e pequenas estrelas explodiam na periferia da sua visão. Tudo o que desejava era um analgésico e umas boas horas de sono. Donde teria aparecido esta militar armada em heroína de episódio barato de Flash Gordon? Era capaz de jurar por todas as sagradas linhas de código de Linus Torvald que o vaivém estava vazio na altura em que o retirara do hangar do Posto de Controle. Aliás o vaivém pouco mais era que um minúsculo cubículo, não tinha lugares onde alguém com o porte daquela militar se pudesse esconder. Mas tudo isso era agora académico. O que realmente interessava agora era como se ver livre daquele contratempo... e da maldita dor de cabeça!
- Se me voltar a bater com esse bastão vou desta para melhor. Tenha dó!
- Dó? Cão! Vou ter contigo o mesmo dó que tiveste pelas centenas de tripulantes do M.F. Leite! Quando acabar contigo não vais servir sequer para Double Cheeseburguer no McPatoDonald. Portanto, e antes que a minha pouca paciência se esgote, levanta-te e começa a contar a tua história.
- Qual história? Sou um mero Chefe de Manutenção do Posto de Controle Fronteiriço #411. Quando o couraçado desatou a rebentar só tive mesmo tempo de apanhar este vaivém e pôr-me ao fresco.
- Ai sim? E suponho que vinhas a rir-te com a tua boa estrela que te avisou com tempo suficiente para percorrer os vários níveis do Posto até ao hangar, onde ainda tiveste tempo para colocar um vaivém em posição de descolagem e iniciar a partida.
Hari soergueu-se lentamente, sentindo que a cabeça queria rebentar, e olhou-a directamente nos olhos.
- Bem, nisso parecemos os dois bastante iguais, não é, oficial?
- O que queres dizer com isso? – Starita sentiu-se desconfortável debaixo do escrutínio daqueles olhos negros. Tinha de manter-se inflexível senão a situação podia rapidamente deteriorar-se.
- O que eu quero dizer é... o que faz uma oficial da Armada Imperial a bordo deste vaivém? Afinal parece que não fui o único com tempo mais que suficiente para escapar!
- Está a insinuar o quê?
- Eu? Nada, nada. Apenas que me parece uma estranha coincidência que duas pessoas com tão bons reflexos se encontrem a bordo do mesmo vaivém.
- Não estou para ouvir as tuas insinuações cão! Cala-te! – Starita tremia ligeiramente e esperava que o tremor não fosse visível. Sabia bem que se este facínora descobrisse o seu talento oculto passaria a ter um ascendente sobre ela e isso seria perigoso, muito perigoso, principalmente numa altura destas em que os mutantes era impiedosamente perseguidos pelas Brigadas de Eugenia do Império. Optou por o silenciar com nova tacada na cabeça após a qual se sentou no lugar do piloto reflectindo sobre o que fazer em seguida. Verificou os instrumentos e descobriu que estava em piloto automático rumo a um ponto no espaço onde, aparentemente, nada existia. Decidiu que iria jogar a cartada do rebelde até ao máximo limite possível. Teria de ir improvisando conforme as coisas sucedessem...
Puxou o corpo inanimado do rebelde para um pequeno armário de manutenção que após esvaziado tinha o espaço mesmo à justa para receber o prisioneiro. Trancou-o e, não satisfeita, soldou com um laser de manutenção em potência mínima as juntas da porta do armário. Aquele só sairia dali quando alguém cortasse o metal. Mais calma ponderou o destino dos seus camaradas de armas e principalmente da Comodoro LadyHawke. Desde a morte da sua mãe às mãos dos rebeld