A maldita rotina é que me mata. Bem, para ser completamente honesto o que me mata são as complicações coronárias, as duas tromboses, a angina de peito, o princípio de enfarte do miocárdio e os três maços de tabaco que fumava antes de ser aqui largado pelo meu filho. Mas isso é dum ponto de vista estritamente médico, porque psicologicamente o que me mata é a rotina.
Todos os dias sempre à mesma hora é o levantar, é o comer o pequeno-almoço e o tomar dos medicamentos e o ir passear ao jardim até perto da hora do almoço, isto se não estiver com cara de chuva porque se estiver ficamos todos muito bem acomodadinhos na sala comum a ver um dos intermináveis programas da TVI com aquele paneleiro do Goucha e a insuflada da Merche até que vem a hora do almoço e como carneirinhos dóceis lá vamos, uns arrastando-se de bengala, outros sendo arrastados de cadeira-de-rodas, eu cá, graças a Deus, ainda vou indo pelo meu pé.
E depois vem a tarde com aquelas conversas da treta ou um jogo de dominó com outros velhos caquéticos e desdentados e sempre com a enfermeira por perto não vá dar uma travadinha a um de nós e Deus livre o lar de repouso de Santa Eulália de vir a ter um velhinho morto por negligência na sala comum, ou até no quarto. O que havia de ser com os familiares e as TVs e os jornais. Por isso lá anda a enfermeira, tipo anjo-da-guarda, só que um anjo que mais parece ter feito o estágio em Auschwitz ou Bergen-Belsen, a vigiar-nos de olho de falcão e perna ligeira e sempre com uma auxiliar por perto com a inominável caixinha dos medicamentos. À hora certa lá vai o rebanho de novo para a cantina sorver mais umas sopas passadas e uns vegetais cozidos, tudo muito nutricional, não duvido, mas tudo muito desenxabido, obrigado. O dia termina com mais uma sessão de TV, onde a pouco e pouco os velhos e as velhas vão adormecendo como velas que acabam a parafina. Já tinha dito que esta rotina me mata?
O meu querido filho mais a minha querida nora acharam por bem que o lar fosse o meu destino final. Mal devem poder esperar por deitar os gafanhos ao dinheiro que andei uma vida toda a juntar, mas se eu puder hei-de prolongar-lhes a miséria o mais possível. Concerteza julgaram que aqui definharia e não duraria mais de um ano. Em parte têm razão. Sinto-me definhado, apertado, enclausurado, asfixiado. Quero poder respirar ar, ver os céus e não, não me refiro àquela nesga sombria de céu que se vê do jardim, mas sim às vastas vistas que só quem viajou pelas zonas inóspitas deste planeta sabe a que me refiro, quero voltar a sentir o spray da água quando o mar embate contra a falésia das costas escocesas, aquele cheiro salgado e húmido no ar nevoento, quero sentir o bulício duma cidade que nunca dorme onde a todo e qualquer momento tudo pode acontecer e acontece como foi Nova-Iorque durante a década de 80 e 90, muito antes de ficar presa no medo e na paranóia do estrangeiro. Quero tudo isso e que tenho? Um clíster duas vezes por semana pelo cu acima, visitas constantes do médico, comprimidos de duas em duas horas e a companhia constante de outros decrépitos como eu. Mas apesar de ter definhado ainda me vou aguentando por cá. Aguentando há mais de dois anos. Só o ver as caras deles quando me visitam à Sexta-feira dá-me alento para continuar vivo. Estafermos! Bem podem esperar pela herança. Da minha parte hei-de aguentar-me o mais possível. E acredito que uma das coisas o que me tem aguentado é o continuar a fumar os meus cigarrinhos. E acreditem que fumar às escondidas até parece que aviva mais o sabor dos mesmos. É a velha história do fruto proibido.
A princípio comecei a fumar no quarto mas a enfermeira deu por isso e foi o cabo dos trabalhos para deixar de a ter à perna. Ao fim dumas semanas lá relaxou a vigilância e foi então que me lembrei que podia perfeitamente sair do quarto a meio da noite. A população geriátrica tem o sono pesado e a partir da uma da manhã só mesmo um auxiliar é que anda por aqui nas rondas. A maior parte da noite passa-a metido no cubículo vendo TV ou lendo A Bola ou o Record. Deve olhar para os monitores de vigilância do circuito interno de vídeo para aí umas duas ou três vezes por noite, se tanto. Ahh como é bom lidar com incompetentes! Para alguma coisa hão-de servir. E assim todas as noites saio sorrateiramente do quarto, atravesso os corredores vazios, viro umas esquinas, abro umas portas e dou comigo no jardim, livre para acender um cigarro e escutar os sons calmos do campo. Pelo menos uma coisa boa que este lar tem é que fica no meio de nenhures. Não sei se suportava aquele cheirete râncido da gasolina das cidades portuguesas e a imitação barata de Los Angeles com uma sirene do INEM aqui e uma buzinadela acolá. Aqui no campo ouvem-se as cigarras, ou os grilos ou lá que raios de bicharada é esta que faz um estridor do caneco a noite toda, vê-se a noite em pleno com milhares de milhares de estrelas, tantas que se um gajo se põe a contemplá-las por muito tempo acaba zonzo com a impressão que a todo o momento elas vão cair em cima dele.
Sinto-me vivo, porra! Posso já não ter prazer com mais nada mas pelo menos deixem-me os cigarrinhos. Quem ouve os médicos a falar até parece que alguém vive para sempre. Não coma gorduras, não fume, faça exercício. Safa! Passam a vida a cagar sentenças para os outros e depois vai na volta são dos que mais abusam. Basta ver aquele que vem cá ao lar. O gajo parece uma baleia com óculos. Vai-me dizer que não come bem? Patranhas! E um outro que tive lá no hospital aquando da primeira trombose? O homem parecia uma chaleira e ainda teve a lata de me vir dizer que tinha de cortar no tabaco, que o tabaco ia ser a minha morte. Pois seja! Ao menos morro a fazer uma coisa que gosto. Não vou ser como estes outros que para aqui andam a morrer a conta-gotas, todos os dias felizes por estarem vivos como se ainda tivessem muita coisa para fazer, sem verem que já estão mortos, só falta serem enterrados.
Normalmente costumo fumar um ou dois cigarros, dependendo da disposição e do tempo. Se estiver frio é um cigarrinho e a correr. Se estiver ameno já fico um pouco mais. Aproveito e como conheço o jardim como a palma da mão vou fazendo um pequeno passeio. A noite é boa ouvinte e acabo por ir desabafando o que vai cá por dentro. Se não fosse assim ainda acabava psicopata a ir de quarto em quarto praticando a eutanásia. Não é que a ideia já não me tenha ocorrido, mas por enquanto não passa duma ideia. Uma daquelas com que me entretenho durante estes passeios. A outra é lembrar-me da Sofia.
Já passaram para cima de quarenta anos mas ainda me lembro do rosto dela como se fosse ontem. Os românticos gostam de dizer que não há amor como o primeiro mas isso para mim são tretas. O verdadeiro amor pode não ser o primeiro nem o segundo. No caso da Sofia não se pode dizer que quando eu a conheci não fosse já rodado. E quase de certo que em todas as anteriores ocasiões pensara também que tinha encontrado o meu amor de sempre. Mas com ela foi diferente. Numa coisa os românticos acertam, pelo menos. Existe mesmo amor à primeira vista. Quando a vi naquele jantar de empresa, sentada ao lado dum dos sócios, com um ar casto e tímido, o meu coração deu um pulo. Decidi logo ali que tinha de a conhecer. Tinha de a ter. E se há coisa em que fui bom era em conseguir meter conversa com o sexo oposto. O facto de ela namorar com um dos sócios da empresa ainda mais me espicaçou. Se um bananas daqueles conseguia cativá-la porque não eu? A verdade é que a Sofia afinal também não andava lá muito satisfeita com o bananas e uma coisa leva à outra e dois meses depois já nós viajávamos pela Europa fora numa espécie de lua-de-mel sem o inconveniente do casamento. Para mim foram os melhores tempos da minha vida. Ela tinha menos dez anos do que eu mas em espírito era suficientemente madura para manter o meu interesse e a sua juventude tornava-me rebelde, capaz de fazer coisas inimagináveis. A velha expressão de trazer ao de cima o melhor em nós assentava que nem uma luva na minha relação com a Sofia. Durante o tempo em que namorámos consegui coisas a nível profissional, intelectual e físico que nunca antes nem depois conseguira. Mas a vida é cruel e dá voltas e voltas e um belo dia acordei numa cama fria com um bilhete em cima da mesinha-de-cabeceira. Pelos vistos a Sofia cansara-se de andar com um homem mais velho e decidira que a erva do outro lado da colina era mais verde. Deixou-me com o coração estilhaçado e menos dez mil contos na conta bancária. Perdoei-lhe tudo! O amor é assim, cego, mudo e surdo. Ainda é pior que a justiça. Claro que quando a cabeça arrefeceu e consegui pensar mais friamente paguei a um detective privado, daqueles que anunciam nas páginas do Correio da Manhã, para lhe descobrir o paradeiro e quando soube onde ela morava e com quem, paguei a dois emigrantes do Leste para mostrarem as qualidades dos bastões de baseball da Sport Zone nas canelas do rapaz. Um deles tirou fotografias depois do trabalhinho. Ainda as tenho guardadas no cofre lá do escritório de casa. Por vezes imagino a cara do meu filho quando um dia, finalmente, puder abrir o cofre e passar os olhos pelo conteúdo. A Sofia, depois do enxerto que o namorado levou, não quis mais nada com ele e desapareceu de circulação por uns tempos. Também era uma rica prenda ela, mas isso nunca impediu que eu a continuasse a amar bem lá no fundo.
Mas tal como sempre digo a vida é cruel e dá com cada volta que até parece um filme. Quando voltei a descobrir-lhe o rasto andava ela metida com uns motards da pesada, com drogas à mistura e outras merdas assim. Estava um farrapo. Nunca me perdoei o não ter conseguido arrancá-la àquele mundo e como um cobarde fui sabendo dela por fotografias tiradas subrepticiamente por detectives, por histórias que me iam contando outros gajos do meio. Enfim, fui uma sombra que a foi seguindo mas que nunca teve os tomates para voltar a tentar. E nestas noites em que puxo uma cigarrada às escondidas e tento calar a tosse com um punho trémulo, quando as memórias me invadem e penso no que podia ter feito e no que não fiz percebo que no fundo, no fundo, tive medo da rejeição. Resta-me o consolo da memória do rosto dela, aqueles olhos tímidos e a um mesmo tempo provocantes, o cabelo sempre em rebeldia, os lábios com um leve toque de sarcasmo e um sorriso de menina no mesmo trejeito.
Quando se chega a velho só se vive das memórias. O passeio de hoje está terminado. Já passa das duas e o ar arrefeceu bastante. De volta à cama e à rotina de mais um amanhã.
Sigo pelo jardim até ao alpendre que dá para a sala comum, fecho atrás de mim as portas envidraçadas e enfio pelo corredor pronto a, se for descoberto pelo auxiliar, começar a desempenhar o papel do velhinho aflito que acordou a meio da noite sem saber para onde fica a casa de banho. Não há-de ser trabalho de Óscar mas dá sempre para enganar estes cabeça de abóbora que eles aqui metem a trabalhar.
Mas tal como nas outras noites tudo corre bem. Pelo menos tudo corre bem até eu passar perto da escada que dá para o piso superior onde ficam os escritórios.
O choro é inconfundível! Por momentos quase continuo a andar pensando que estou a imaginar, mas não. Detenho-me junto à escada. Consigo ouvir claramente um choro de criança. Olho para cima mas na penumbra não consigo ver nada. Ainda penso em ir ao cubículo chamar o auxiliar mas depois penso melhor. Era capaz de complicar as coisas. Sussurrando, digo: “está aí alguém?” - a voz sai-me mais forte do que queria e assusto-me pensando que no silêncio geral devo ter soado estridentemente. O som do choro pára. Consigo ouvir um restolhar de tecido e uns passos de quem não está calçado. Forço a vista pela escada acima mas continuo sem ver nada. Onde estará o maldito interruptor? Este casarão é um labirinto de corredores e corredores e cada um tem interruptores nas pontas. Este corredor em particular tem esta escadaria a meio do trajecto e não consigo lembrar-me se tem algum interruptor perto da escada ou se apenas os tem nas extremidades. Os passos páram e o choro recomeça, mas mais baixinho e mais entrecortado. Volto a sussurrar: “quem está aí? Como te chamas? Não chores!”
Da escuridão sai uma mão que se fecha em torno da minha. Quando tive a última trombose a sensação não foi muito diferente. O coração parece resfolegar dentro do peito, todo o sangue como que desaparece e um torno asfixiante envolve-me a garganta cortando-me a respiração. Mas passa rapidamente e embora sentindo picadas atrás dos olhos consigo restabelecer-me do susto o suficiente para ver quem me tinha agarrado. É uma menina. Não deve ter mais de treze ou catorze anos e está vestida com uma camisa de noite. Tem longos cabelos negros e uns olhos da mesma cor que me olham intensamente. Na luz de presença do corredor noto que ainda brilham das lágrimas. Numa voz fina e quase inaudível pergunta-me: “Queres ser meu amigo?” Nem sei o que responder. Mas quem pode ser esta miúda? Que está ela a fazer aqui num lar de 3ª idade? Não me digam que a enfermeira tem cá a filha a dormir. Na volta a miúda teve um pesadelo e saiu do quarto. Martelo a memória a tentar-me lembrar da vida pessoal da enfermeira. Confesso que sempre me marimbei para a mulher e nunca fui muito de conversa com o staff do lar. Azar meu. Se não tivesse tanto a mania de ser um emproado anti-social podia agora saber melhor o que fazer nesta situação. Bem, nada como tocar de ouvido.
(continua)