Obrigado pelas palavras gentis Ana.

(continuação)
O corredor a certa altura começou a ter portas dum lado e doutro. A maior parte estavam fechadas mas pelas poucas abertas Clemente viu que eram alojamentos. Possivelmente da tripulação se bem que se lembrasse da instrutora ter explicado aos potenciais colonos que as naves da nova geração já não dispunham de tripulações per se. Se calhar esta era uma nave adaptada e ninguém quisera gastar orçamento a modificar o interior. Quanto mais andava pelo corredor mais Clemente sentia o frio punho da solidão abater-se sobre ele. Apetecia-lhe gritar, chamar por alguém. Mas a própria inutilidade do acto mantinha-o silencioso. Ao longe viu o fundo do corredor. Apressou-se os últimos metros, ansioso por sair dali e começar uma nova vida num novo ecossistema.
A saída do corredor dava para uma das baías dos vaivéns que transportariam os colonos até à superfície da colónia. O local parecia ter sido o palco duma batalha. Por todo o lado jaziam bocados de metal retorcidos, plástico fundido, e uma miríade de destroços não identificáveis. Clemente deambulou pelo meio dos destroços tentando perceber o que acontecera. Um incêndio? Uma explosão? Tinha aspectos disso mas aparentemente não causara vítimas. Em lado algum se viam corpos, e muito menos se viam pessoas que pudessem ter detido os fogos. Estaria a nave tão avançada que tinha sistemas próprios de contenção de acidentes? Conhecendo Clemente como conhecia a maneira de pensar do Governo duvidava muito que tivessem investido em A.I. De segurança, mesmo que em causa estivessem vidas. Ao fim e ao cabo pessoas era o que não faltava no planeta-mãe. Já os recursos eram mais escassos e até agora nenhum Governo de nenhum Bloco conseguiria um suficiente suporte económico das dispendiosas colónias. Portanto, quod erad demonstratum, alguém de carne e osso tivera de pôr fim ao que ali se passara. Onde estariam agora os bombeiros? A elaborarem um relatório de danos? Era possível, era possível. Clemente desejou pela enésima vez que os pais tivessem pago para ele ter um implante de rede. Seria tão fácil aceder à I.A. e saber o que se passava. Mas esses implantes embora comuns não estavam ao alcance de Deltas. Enfim, era encolher os ombros e tocar de ouvido. Um écran ainda funcionava ao fundo da baía mas àquela distância Clemente não percebia o que tinha escrito. Contornando os destroços foi para mais perto e leu então os horários de saída dos vaivéns. A cada um estavam associados uma gama de códigos que mostravam quem os podia ocupar. Clemente esperou um pouco e o lento rolar dos horários mostrou finalmente qual era o seu vaivém. Se ele ainda estivesse na doca 7 era para lá que ele devia ir. A saída seria dentro de meia hora. Era um absurdo pensar que alguma coisa ainda funcionasse bem depois de tudo o que já presenciara mas não lhe restava outra alternativa e assim, laboriosamente, lá percorreu os metros que o separavam da doca 7.
Tal como esperava, junto à doca não estava ninguém embora o portão de embarque estivesse aberto. A boca do portão mostrava um pequeno túnel cilíndrico iluminado a espaços por lâmpadas. Meteu-se por ele e já sem saber bem o que esperar daquilo tudo, emergiu no interior do vaivém. Sendo aquele um vaivém para deltas não havia lugares sentados mas antes cintos de segurança que saíam das anteparas. Uma voz monocórdica instava os passageiros a colocarem os cintos tal como a figura desenhada na antepara ilustrava. Clemente olhou em volta. Continuava sozinho. Decidiu que por uma vez iria ignorar as ordens e tentar saber algo mais. Não podia ser sempre ovelha de rebanho. Dirigiu-se até à frente do vaivém apenas para descobrir que não havia pilotos. Tudo parecia automático e pré-programado. Pela pequena janela da frente do vaivém conseguia ver a colónia girando como um enorme berlinde azul e branco por baixo de si. Ao menos tinham acertado no planeta. Restava-lhe obedecer à voz e prender-se o melhor possível. A certa altura a gravação foi substituída por uma contagem decrescente dos minutos para a separação do vaivém. A porta de entrada fechou-se em íris e de vários tubos dispostos ao longo da saleta começou a sair um gás que em contacto com o ar solidificou, primeiro criando uma espuma gaseificada e depois uma geleia peganhenta que o comprimiu ainda mais contra a antepara. Clemente, já habituado à geleia da cápsula de estase, começou a respirar calmamente, engolindo a geleia lentamente para não despertar o reflexo de vómito.
Na viagem para a atmosfera não teve a companhia de nenhuma vozinha de I.A. A fúria iónica contra o casco sobreaquecido do vaivém provocava-lhe uma sensação de estar imerso numa tempestade sónica, sensação essa apenas atenuada pela quase surdez induzida pela geleia anti-impacto. Após o que lhe pareceu uma eternidade a geleia liquefez-se desaparecendo pelos ralos no pavimento. Libertou-se dos cintos e esperou que a porta irisasse uma abertura. Não fazia ideia de onde aterrara porque esses pormerores não fizeram parte da instrução inicial. Decerto estacionara num dos centros de quarentena. Tinha agora pela frente um entendiante processo de aplanetarização onde os médicos iriam ver se o seu sistema se adaptava ao planeta ou se seria necessário ser metamorfizado. Um colono nunca sabia bem qual o planeta que lhe coubera em sorteio. Bem talvez os Alfas soubessem, mas decididamente nunca Deltas. Não adiantava moer a cabeça. Em breve saberia. À sua frente a porta abria-se.
A primeira bala falhou a cabeça por milímetros. A segunda teve mais sorte e apanhou-o no ombro fazendo girar sobre si próprio e perder o equilíbrio. Momentos antes de cair no pavimento do vaivém sentiu outro impacto na base da coluna. Depois veio a dor dos impactos, quer das balas, quer contra o pavimento. E por fim veio o oblívio.
Quando veio a si estava preso numa cadeira, totalmente nu. A divisão onde estava não devia medir mais de quatro por quatro metros. Embora firmemente amarrado conseguia virar a cabeça e constatar que, pelo menos dos lados as paredes não tinham janelas nem orifícios. Também não distinguiu nenhuma porta. A parede imediatamente à sua frente tinha um enorme espelho que ele suspeitava que não fosse inteiramente verdadeiro. Sentia-se observado. Fez a única coisa que se lembrou: gritou!
Afinal na parede do seu lado esquerdo havia uma porta, tão bem camuflada que mesmo depois de aberta era difícil perceber onde acabava a parede e começava a porta. Por ela passaram dois homens trajados de fato negro, camisa branca e gravata azul. Ambos usavam óculos escuros. Clemente apeteceu-lhe rir perante a incongruência da situação. “Ó meu Deus,” - pensou - “vou ser interrogado pelos MIB!” Cada um dos homens posicionou-se em frente dele a igual distância dele. Ia começar a rotina do “bom agente” - “mau agente”. Clemente preparou-se mentalmente já que fisicamente nada podia fazer. Ao menos que quando batessem não fizessem grande estrago, pensou.
O MIB do lado direito iniciou o interrogatório:
- Como te chamas? De onde vieste?
Clemente não viu razão para mentir. Disse o nome e de onde viera. A segunda resposta valeu-lhe uma valente bofetada que o deixou meio inconsciente. O segundo MIB acercou-se dele, levantou os óculos escuros e com um ar preocupado instou-o a dizer a verdade, para bem dele. O primeiro MIB voltou a perguntar-lhe de onde viera.
- Porra, pá! Já disse que vim da Terra. Se vocês saloios não sabem onde fica porque não compram um Atlas Galáctico? - tal como esperava esta resposta mereceu nova bofetada.
Massajando a mão com que o esbofeteara o MIB deu uns passos pela sala e por fim saiu pela porta. O segundo agente recomeçou a representação de “agente bom”.
- Tenho de pedir desculpa pelo Esteves. O ânimo dele não anda lá muito em cima e descarrega facilmente. Mas se tu colaborasses um pouco ele ficava diferente. Acredita que me custa ver-te a levar assim porrada. Porque não dizes logo que és um agente soviético?
- Um agente quê?
- Soviético. És um comuna pá. E a gente já sabe disso. Isto é uma mera formalização do que já sabemos portanto podias poupar a ti próprio um mundo de dor e escarravas cá para fora tudo. Como planeavam entrar nos EUA, como planeavam assaltar os nossos silos e por fim o Pentágono e a Casa Branca. Acredita, pá! Nós sabemos de tudo. Os outros que apanhámos antes de ti disseram até as cores das ceroulas do camarada Kruschev!
- Se eu vos disser que não faço a mínima ideia do que estás para aí a dizer, acreditavas?
O agente abanou a cabeça aferrando um ar tristonho.
- Tss, tss. Assim vai ser difícil. Vai, vai.
Nesse momento entrou novamente o agente Esteves. Ou talvez fosse outro. Ao Clemente pareciam todos saídos do mesmo molde. Até na cor do cabelo e na altura eram iguais. O agente Esteves acercou-se dele e segredou-lhe ao ouvido:
- Podemos fazer isto da maneira fácil ou da maneira dolorosa. Qual é que escolhes pedaço de merda?
- Ora essa! Escolho a maneira fácil! - Clemente podia ser um Delta mas não era parvo. Na hora que se seguiu foi inventando o melhor que podia por forma a corresponder às expectativas interrogativas dos agentes. Por vezes não sabia bem o que responder mas com um incentivo verbal do “agente bom” lá conseguiu ir construindo uma fantasia que parecia a cada momento mais agradar ao Esteves. Ao fim duma hora de perguntas e respostas os agentes sairam do cubículo trancando a porta atrás deles. A Clemente restou-lhe olhar-se no espelho que agora não duvidava ser um vidro duma via. Um dos lados da cara estava inchado do sopapo. O outro apresentava um ligeiro corte que sangrava ligeiramente, já quase coagulado. Estava bonito, sim senhor!
As luzes apagaram-se. Há umas horas atrás vira-se forçado a urinar e a defecar, pois ninguém respondera aos seus apelos. Agora o frio e a fome apertavam. E o cheiro era horrível! No escuro pareceu ouvir ruídos mas nenhuma porta se abriu. Pelos vistos os agentes dos EUA tencionavam deixá-lo ali toda a noite, ou dia. A verdade é que já perdera a noção de quanto tempo passara desde que tinha sido imobilizado pelas balas atordoantes. Concentrou-se a tentar erguer-se sobre as pontas dos pés, mas estava demasiadamente bem amarrado para conseguir algum movimento. Restava-lhe dormir.
Acordou com a noção de movimento. Sabia que tinha os olhos abertos mas continuava imerso em breu. Por fim percebeu que tinha uma carapuça sobre a cabeça. Já não estava atado à cadeira pois sentia uma superfície dura contra toda a extensão do corpo. Devia estar deitado nalgum tipo de veículo que sacolejava e emitia ruídos de motor. Ainda tinha os membros presos. Manteve-se imóvel tentando pelo som perceber se estava ou não acompanhado mas os ruídos roucos do motor disfarçavam qualquer outra presença. Rolou sobre si. Se alguém estivesse consigo decerto notaria o movimento. Tinha de arriscar. A acção não desencadeou nenhuma resposta pelo que assumiu que ou fora ignorado, ou estava efectivamente sozinho nalgum compartimento dum veículo. Mais animado começou a procurar maneira de se sentar. Os esforços provocaram-lhe alguns espasmos musculares mas por fim, empurrando o corpo contra uma das superficíes ergueu-se o suficiente para se colocar na posição de gatas. Agora restava-lhe tentar afrouxar os nós que o prendiam se bem que sentisse que estava preso com fita plástica o que iria dificultar imenso a tarefa.
Ao cabo duma meia hora de grunhidos, esfoladelas, e muito suor conseguiu soltar os pés. Com maior liberdade de movimentos sentou-se o melhor possível e começou a gargantuesca tarefa de tentar libertar os pulsos. Não chegou a completar a tarefa pois uma violenta explosão sacudiu o veículo que se imobilizou, vibrando. Ouviu distintamente vários gritos de alarme, mais duas ou três explosões, o matraquear inconfundível de armas automáticas e uma correria de várias pessoas gritando frases de comando que cada qual parecia ignorar. Ao fim dum bocado reinou o silêncio. Um barulho de metal contra metal mesmo junto a si assustou-o. Percebeu que alguém tentava entrar no compartimento onde estava. Um pouco mais de marteladas de metal em metal e a entrada pareceu ceder. Alguém entrou para dentro do veículo e com mãos rudes e sem uma palavra agarrou-o sem cerimónias e meio arrastando-o, meio ajudando-o a andar fê-lo sair do compartimento. Tiraram-lhe o capuz e a forte luz solar encandeou-o. A pouco e pouco começou a divisar os rostos dos seus novos captores. Todos protegidos por máscaras passa-montanha era difícil perceber quem seriam. Também pouco importava. Há algum tempo que Clemente percebera que desde que saira do estase que não estava fadado a conseguir ter agum controlo sobre o seu destino. Era deixar-se ir com a maré. Aqui estou, aqui me têm era o seu novo lema de vida.
- Camarada! Estás livre! Alegra-te! - Quem falara bateu-lhe fortemente nas costas. - Percebes o que te digo? - depois virando-se para os outros – Se calhar não sabe inglês. Quem é que fala aqui russo? - os outros encolheram os ombros até que um deles se adiantou:
- Não me parece que nos devamos alongar mais por estas bandas. Não tarda temos os porcos em cima de nós. Eu sugeria irmos andando.
- Claro que sim, camarada! Vamos já. Só queria sossegar o nosso herói. - retorquiu o que falara em primeiro lugar.
Dois deles pegaram-lhe nos braços e sem se preocuparem em soltá-lo carregaram-no e arrastaram-no até um jipe que estava ali perto. Agora menos encadeado Clemente conseguiu ver que uma coluna de três veículos estava imobilizada numa estrada sem nada em redor. Ele tinha vindo numa carrinha blindada que seguia no meio de dois jipes de aspecto militar. Os jipes ardiam largando no ar um espesso fumo fuliginoso. A carrinha tinha os pneus furados. Aqui e ali viam-se corpos de agentes e militares em grotescas posições de morte. E todo o golpe parecia ter sido efectuado por estes homens que, Clemente via agora, eram apenas quatro. Que eficiência! Fossem eles quem fossem pensavam ser ele um herói e isso na agenda dele era bom sinal. Parecia que as coisas agora lhe iriam correr de feição. Pelo menos até que eles percebessem que de herói pouco tinha e de Delta tinha tudo. Enfim... como há pouco pensara, era deixar-se ir na maré. Até porque continuava de mãos literalmente atadas.
(continua)