Quando entrei no negócio de detective privado não vinha com a cabeça cheia de tretas como esses imbecis que viram meia dúzia de filmes com o Bogart e leram as novelas do Hammet e já se acham capazes de serem os maiores da cantadeira. Não. Eu sou um gajo lúcido e depois de 36 anos na PSP e quando a reforma veio autorizada o que me deu na bolha foi montar este negócio de detective privado sabendo de antemão que ia ser um trabalho chato como a potassa.
Entre andar atrás de maridos adúlteros e fazer algumas cobranças difíceis, o negócio não deixava muita margem para o glamour que o pessoal viciado em filmes norte-americanos da década de 40/50 pensava fazer parte da especificação laboral. De facto e durante os primeiros meses que montei a loja numa sala estéril da Torre 2 das Amoreiras tudo o que tive para me entreter foi a TV por cabo, as revistas de carros e os sites porno. Depois, e lentamente a conta-gotas, foram aparecendo os casos, alguns deles por via dos meus ex-colegas de esquadra que foram uns porreiraços em deixaram de cumprir a função para a qual os contribuintes arrotam o dinheiro nos impostos de forma a que eu tivesse umas migalhas, outros pela mais velha forma de publicidade, o boca-a-boca, não no sentido de linguado, mas no outro, aquele em que um cliente satisfeito – ou melhor uma cliente satisfeita, porque na maior parte das vezes a clientela é feminina – me recomenda a uma amiga. As mulheres são umas desconfiadas do caraças no que toca aos maridos e de vez em quando eles de facto andam a mijar fora do testo a maior parte das vezes os constantes atrasos são apenas umas inocentes escapadelas aos bares com os amigos em pós-laboral. Mas já se sabe como são as mulheres. Sempre de grão debaixo da asa. E o facto é que algumas vezes o sacanas lá têm o seu caso e resta-me documentá-lo suficientemente bem para que as encornadas esposas possam esmifrar o desgraçado o mais possível em tribunal.
Enfim há formas piores de um gajo passar os seus anos de reforma e no meu caso isto é tão fácil como tocar à corneta. Tudo o que preciso é um organizer com os contactos mais importantes, um telemóvel e um carro com gasosa para as voltas.
A vida ia singrando entre altos e baixos quando um belo dia entrou-me pelo gabinete a dentro a ruiva mais boazona em que eu alguma vez tive a sorte de pousar os orbitais. Não sei se estão a ver! A gaja era dinamite sobre pernas. E que pernas! O que trazia vestido, um curto saia-casaco em tweed, daqueles que sem mostrar muita carne revela quase tudo, quer pelo tamanho diminuto da saia, quer pelo decote avantajado do casaco, deixava adivinhar uma coxa que era um hino às mulheres. Quando a gaja entrou no gabinete com um ar blasé de quem já viu tudo e experimentou mais ainda, inundando-o com uma fragrância que associo a anúncios de Chanel 5 com Nicole Kidman, e sem sequer pedir licença, se sentou no cadeirão, cruzando negligentemente as pernas, foi como se a Segunda Vinda tivesse acontecido. Posso jurar sobre a Bíblia, e um raio me caia já sobre a cabeça, se não ouvi trombetas angélicas tal como diz o Bom Livro. Sacou dum cigarro impecavelmente contido numa cigarreira prateada, mais cara provavelmente que todo o meu rendimento desse ano, acendeu-o com um Ronson daqueles que um gajo já só consegue comprar no e-Bay e por uma boa maquia e depois de exalar duas baforadas de fumo para criar um ambiente mais propício à sua existência perguntou numa voz rouca e sensual: “É você o detective?”
“É o que diz ali na porta, madame” – respondo eu já meio refeito do choque inicial e começando a adoptar a minha atitude profissional número dois, a que eu reservo para gente que me cheira ter dinheiro.
(continua)