Vivo no corpo eléctrico, no fractal de Mandelbröt, suavemente perpassado por correntes contínuas que me deslocam de cima para baixo e para os lados, esticando-me até ao infinito, perdido no mar da tranquilidade, imerso em milhões de milhões de construções fraccionadas que pulsam alegremente e como rodas electrificadas trespassam o cérebro invisivelmente subjugando a força original da matriz.
Percebo-me como uma ilusão criada numa superfície magnética, perdida de nexo e volatizando-se na cadência ritmíca dos impulsos electro-magnéticos solares. Algures uma voz clama por mim, mas o som afoga-se no ruído impenetrável das rodas eléctricas. Sorrio. Aceno para a voz incorpórea. Estendo-me de zero a infinito e sou… UM!
LIGADO!
PONTE!
PLASMA!
Exercito e flexiono massa orgânica, quente, pujante de músculo. Incorporei. Novamente! E segue-se a rotina da tomada de consciência. Absorver o redor, sentir o mundo como vindo em pequenos goles pelas estreitas frechas dos olhos do mamífero. Tão impotente! Tão livre!
Sigo para fora do edifício. Um novo dia desponta por cima dos telhados do subúrbio e ao fundo da rua ouve-se o som de risadas infantis. Um grupo de meninas segue em fila indiana uma mãe que as conduz, qual rebanho amestrado docemente, para o depósito. Estou agora sozinho na rua. Uma brisa ligeira desce o asfalto, rolando uma folha de papel de jornal. A folha passa a alguns metros de mim. Num instante deparo com a notícia e tão de repente como a vi esta dissipa-se… levada pela brisa. Perdida no caos matemático do que está além da mera compreensão mamífera. Cérebros limitados jamais abarcarão a dimensão de todas as equações descritivas da realidade. Jamais poderão olhar no olho do Ancião e poderão sentir a sanidade ainda lhes pertencer.
Um vórtice desce incomensurável das altas planuras onde os Deuses conspiram e rodeiam-me de luz rosácea. Sinto a epifania do saber.
CONHECIMENTO.
TRANSMUTAÇÃO!
TRANSMIGRAÇÃO!
Perfuro o tecido do espaço-contínuo e vibro nas milhentas de milhentas de possibilidades deixadas a vibrar em suave sinfonia quântica.
Um pé à frente do outro e a maior das distâncias pode ser percorrida. Na cadência lenta do vertebrado. Lenta. Tão supremamente lenta que até poderiam surgir e desaparecer galáxias inteiras nos recantos recônditos do Universo, civilizações podiam surgir e esmagar-se ao ritmo daquelas passadas. Como aspiro o ar e sinto a gélida incerteza de não conhecer o caminho de volta. Como sinto o frémito do coração bombeando líquido para os tecidos. Já não vivo no corpo eléctrico. Fui aqui atirado em missão de…
SILÊNCIO!
CONSTERNAÇÃO!
Apenas em devido tempo… ela está ali. Logo mais abaixo na rua, bebendo um café e lendo as páginas dos jornais matutinos. Tento perceber se ela me conhece. Já me terá visto antes? Será familiar este rosto que espreita o dela através do vidro baciento da humidade matinal? Entro no café e sento-me ao balcão. De costas para ela. Ignorando-a. Aparentemente. Tudo um jogo! Um maldito jogo! As vozes elevam-se das profundezas. Ditam-me códigos, percepções fracturadas na beleza única do floco de neve perene que cai cintilando do vasto céu onde o Ancião habita. Hoje e aqui. Aqui e agora. Começa o derradeiro capítulo da vida dela.
O empregado dirige-se a mim mas pára esbugalhando os olhos. Com as mãos abanando em frente ao corpo tenta que a voz lhe saia mas perde-se no silêncio que antecede a morte dela. Depois o caos imiscui-se novamente no quotidiano.
No dia seguinte seria eu também notícia nos jornais matutinos?
TRANSMIGRAÇÃO!
Aceite, entregue no oceano de informação, afundo-me placidamente no turbilhão de sinapses electrificadas, iluminando as vastas planícies do Alter-Mater-Construct onde na difusa linha do horizonte se percebe a névoa do Ancião.
Josefina nunca soube porque teria aquele vizinho erguido a pistola na face dela nem soube o instante da sua morte, nem chorou a pequena vida no ventre que seria horas depois salva e colocada na incubadora da maternidade do Hospital Central. Gedeão teve a ideia que uma vida morrera e outra surgira qual Fénix no espaço de poucas horas. Uma vida trazida da tragédia. Chorou desconsoladamente pela injustiça e estupidez cega do mundo. A família era tudo! E por aquela réstia de felicidade que lhe sobrava faria tudo. Nessa noite sonhou com Xangri-Lá e os jardins verdejantes de Hiperbórea onde, descalço, correu pelas fontes e cascatas cintilantes, rindo e gorgolejando a água cristalina e pura como lanças de gelo líquido. Abandonou-se no som das harpas doces. Comeu dos frutos da cornucópia. Bebeu o mel do favo. Saboreou a carne das odaliscas fugitivas e acordou banhado em suores pegajosos. O relógio digital marcava 0:00. A hora das bruxas. Onde Próspero se arriscava para perguntar sobre o futuro mal sabendo que o futuro nada mais é que o passado ainda por vir. Como uma eterna serpente em autofagia. Cambaleou até à casa-de-banho e deixou a água fria escorrer longamente sobre a cabeça. O choque trouxe-o de novo à realidade e à dor do presente. A madrugada veio encontrá-lo a verter lágrimas no sofá.
Ligações são estabelecidas e vias abrem-se ao mensageiro. As prioridades são abaladas no constante frémito da reposição dos valores infinitesimais que cercam a construção do novo patamar. Algures uma teia electrónica tece-se à velocidade da luz, deixando pouco espaço ou capacidade de manobra aos antigos membros da via solenaris. É o tempo da extinção. No último abalo da recomposição fractal final segue-se um titânico soerguer de vontades luminosas que se refugiam nos espaços indefectíveis e inexpugnáveis da Alter-Mater-Construct onde tudo se define em facetada harmonia num amplexo pentagonal. Momentos passam em que as hipercordas vibram e se afinam por uma nova melodia. O velho renasce como novo. O novo desdobra-se como uma flor atingida pelos raios solares. É de novo que o Ancião se resubmete ao julgamento do Infinito. O julgamento é…
IMEDIATO!
EFICAZ!
ATROZ!
Onde o caos impera apenas a ordem consegue ser divisada por olhos e sentidos perceptíveis e invisíveis. Mergulham todos na agonia do tempo sem fim. Circular. Sinto-me trazido à tona. Preparam-me com nova informação. O ciclo repete-se. Incorporarei vezes e vezes sem conta até que as estranhas equações possam ser restabelecidas nos derivados compostos da sapiência abundante do Ancião. Ao longe, muito ao longe o frémito incessante eléctrico subjuga-se ultrapassado pelas onda sinusoidais duma nova canção. O ritmo analógico da carne abraça-me com um novo corpo. Uma nova posição. Desço da cama para o chão de madeira. Sinto os milhões de milhões de moléculas contra as palmas da mão. Absorvo rapidamente o máximo de informação. Sedento de me agarrar à réstia do meu plano anterior. Tarde demais me apercebo que já tudo passou. Estou no aqui e agora. Mais uma vez terei de me reger por regras insanamente lentas. Coordenação e esforços musculares ocupam quase todo o meu cérebro animal. Orgânico. Sou nada. Uma minúscula partícula num tecido corrupto e podre. Esvai-se a vontade apenas erguida pela imperiosidade dos comandos implantados no córtex. Sigo para o corredor do complexo habitacional. E do corredor passo para dentro da caixa ascensora onde me movimento lentamente em direcção ao hall de entrada do edifício. Desço as poucas escadas que conduzem à rua. Um pé perante o outro. Ignoro os olhares curiosos, trocistas, espantados, assustados. Uns apontam. Outros voltam a cara fingindo não me ver. Sinto um misto de prazer e ódio em tocar desta forma, por instantes, breves, o quotidiano desta mole mamífera que se movimenta sem nexo e rumo. Sem saberem da Verdade que se oculta sobre as cabeças deles. Ao passar defronte duma montra vejo a nudez do hospedeiro.
(continua)