Manuel gostava de pombos fritos. Era um gosto que já lhe vinha desde tenra idade quando um dia o pai, farto de cuidar do pombal que mantinha no terraço dum prédio nos subúrbios da Capital, decidira passar de columbófilo a cozinheiro e num ápice reduzira a população do pombal de umas centenas de aves até uns meros cinco pombos enfezados que por piedade o pai soltara aos céus. Durante semanas a fio Manuel provara pombo cozinhado das mais diversas e imaginativas formas. No forno, na brasa, cozido, frito, assado. Enfim, um estendal de receitas em que a peça principal era pombo. Mas de todas as receitas a que mais lhe agudizara as papilas gustativas fora o pombo frito. Assim mesmo, só frito, sem acompanhamentos a não ser talvez um copo de tinto ou à falta de melhor uma loira bem fresquinha. Um pouco de alho, algum sal e estava ali para o Manuel um acepipe digno de príncipes.
O problema é que cada vez era mais difícil encontrar pombos à venda. Levaram o mesmo destino que a petinga e o jaquinzinho. Coisas da UE, que insistia em proteger determinadas espécies e além disso o pombo como ementa decaíra no gosto da clientela de há uns anos aquela parte. Manuel agora socorria-se de amigos caçadores que, oportunistas, lhe cobravam os olhos da cara por borrachinhos tenros e apetitosos.
Um dia, num daqueles momentos de epifania que volta e meia cruzam a vida duma pessoa, estando ele no Jardim da Estrela sentado num banco aquecendo as pernas e lendo o jornal, reparou, talvez pela primeira vez, no constante arrulhar dos pombos. Aquele som que sempre parecera fazer parte da banda sonora da cidade estava de tal forma enraizado no subconsciente que foi com algum esforço que Manuel verdadeiramente reparou no som e na implicação que tal som tinha. Ali, junto aos pés dele, pelo mísero preço de uns miolos de carcaça estava a solução dos seus problemas. Como se uma janela se abrisse na sua mente Manuel viu com outros olhos o mar de pombos que pejava a calçada. Eram imensos. Centenas, talvez milhares de pombos que se digladiavam por uns bocados de papo-seco que as velhinhas e os petizes nunca se cansavam de lhes atirar.
No dia seguinte Manuel surgiu com um saco cheio de carcaças e dirigiu-se para uma área mais reservada do jardim. Sentou-se num banco à sombra e começou a esfarelar as carcaças. Não levou muito tempo a que os olhinhos tangerina dos pombos captassem aquela fonte de alimento e de imediato Manuel se viu rodeado de bicos insistentes que picavam o direito a nutrirem-se. Até lhes achava piada na sofreguidão com que se lançavam ao miolo. Brincou. Atirava o pão para longe para os ver a correrem e esvoaçarem, depois atirava mais perto para de novo ver a revoada. Era um jogo que o entretinha.
Cumpriu o ritual durante duas semanas. Chegou ao ponto em que só de o verem os pombos já se aproximavam. Ainda dizem que os animais não são inteligentes. Falem-lhes ao estômago que logo vêem. Ao fim das duas semanas, além do saco com as carcaças, Manuel trouxe uma capa. Nada de muito espampanante. Na verdade era uma daquelas capas que os universitários usam. Para os efeitos pretendidos servia bem. Manuel estudara os ritmos do jardim e já conhecia bem as horas de maior afluência. De manhã era um sossego. Só os velhotes andavam por ali. Perto do meio-dia a coisa complicava-se com miudagem das escolas e alguns homens e mulheres que aproveitavam a hora do almoço para irem ali à bica. Por volta das três da tarde era a vez dos infantários. Depois das seis da tarde e até ao fecho do jardim era impossível. Ficava cheio de famílias, namorados, velhos, novos, enfim, uma autêntica multidão. Por isso a hora escolhida tinha mesmo de ser logo pela manhãzinha, assim que os portões eram abertos cerca das oito e meia. Até porque os pombos pareciam insaciáveis e para eles toda a hora era boa para picarem.
Manuel começou o lento ritual de esfarelar o pão para a pequena multidão que já se avizinhara dele. Ajeitou a capa no banco a seu lado estendendo-a. E quando ninguém estava por perto lançou-a num movimento várias vezes treinado no quarto em sua casa. Tinha ganho um jeito especial nos pulsos, como um pescador que lança a rede. Num instante a capa tapou vários pombos e num instante Manuel recolheu as pontas, atou-as e enfiou o embrulho arrulhante numa mochila.
Continuou mais uns momentos a espalhar o pão. Desconfiados os pombos olhavam-no de longe e não se aproximavam a não ser os mais temerosos que vinham debicar para logo fugir aos saltinhos. Por fim Manuel cansou-se da farsa e sacudiu os restos de pão das mãos. A mochila às costas estava quente.
Mais tarde teve de separar os pombos novos e tenros dos velhos e dos doentes. Estes matou-os sem piedade e meteu no lixo. Aos novos torceu-lhes o pescoço, cozeu-os para soltar as penas, abriu-os, esviscerou-os e meteu-os em molho de marinada. Nessa noite regalou-se!
Para seu espanto no dia seguinte os pombos não se aproximaram. Foi como se a notícia tivesse corrido o bando. Poisavam nos ramos das árvores e olhavam-no fixamente. Os que andavam pelo chão à cata mal se apercebiam da sua presença levantavam voo. Manuel ficou sentado uma hora esfarelando pão mas nem mesmo os mais valentes se aproximaram. Ao fim dessa hora Manuel tinha um monte de migalhas qual Evereste panífero. Desconsolado, foi-se embora. Já perto da saída voltou-se e viu que alguns pombos circundavam o Evereste mas ainda assim não lhe tocavam. O vento acabou por dispersar as migalhas.
Durante o resto da semana Manuel cumpriu o ritual com o mesmo efeito. Os pombos evitavam-no. Parecia-lhe até que o olhavam com animosidade e não raras vezes sentira um calafrio ao virar-lhes costas e ouvindo-os arrulhar do cimo das árvores. Desistiu da caçada. Teria de se voltar a socorrer dos amigos caçadores. Ainda pensou em tornar-se columbófilo mas depressa percebeu que as associações controlavam rigorosamente as populações e ser-lhe-ia muito difícil explicar os desaparecimentos em massa das aves. Enfim, conformou-se.
Os dias passaram, tornando-se em semanas que deram vagarosamente lugar a meses. O tempo arrefeceu, primeiro gradualmente, depois mais bruscamente. Uma certa manhã Manuel acordou ao som da chuva a tamborilar do lado de fora da janela. O céu estava de chumbo. Levantou-se e ficou alguns momentos a olhar pelos vidros enrugados da água. Ia a voltar costas para começar as abluções matinais quando viu o pequeno corpinho cinzento pousar no parapeito. Por momentos pensou que alucinava. Mas não. Era mesmo um pombo que o olhava do lado de fora com aquele jeito especial das aves de torcerem a cabeça. Depois e para grande espanto dele o pombo bateu no vidro com o bico. Não uma, mas três vezes. Hesitantemente chegou-se à janela, desprendeu o caixilho e abriu-a. O pombo levantou voo de imediato, deixando-o ali aos salpicos da chuvinha miúda. Ainda espreitou para o céu mas já não o conseguiu ver. Ia para voltar a cerrar a janela quando um pequeno bando de pombos vindo por cima do prédio passou a rasar em frente à janela. Voltearam uma, duas vezes e por fim pousaram em linha no parapeito. Ali ficaram olhando para ele.
Até que Manuel percebeu. Estavam magros. Tinham fome. Ir à cozinha buscar os restos do pão do dia anterior, esmigalhá-lo em pequenos farelos e depositá-los no parapeito da janela foi obra de um minuto. Os pombos lançaram-se vorazmente ao pão. Manuel apreciou-os de dentro do quarto. Não se atrevia a chegar-se mais do que o necessário. A certa altura um dos pombos olhou fixamente para ele. Era um pombo velho. Tinha já as penas algo gastas nas pontas das asas, o bico amarelado e falhado e uma das patas terminava num coto, resultado provável dalguma doença de outrora. Um a um os pombos pararam de debicar, entreolharam-se e sem aviso começaram a bicar a cabeça de um deles. O pombo tentou esquivar-se mas os outros em maior número não lho permitiram. Não demorou muito a morrer. Os outros levantaram voo deixando ali o corpo inerte.
Daí em diante ao Manuel nunca mais faltaram borrachinhos novos e roliços. Não muitos, que os pombos nunca lhe ofereciam mais do que um a cada dois dias, mas o suficiente para o confortar. E os pombos, esses também deixaram de se preocupar com os Invernos.
© Ricardo Loureiro, 2006