A turba-multa agigantava-se para além da capacidade de controlo das forças policiais. Gritos e palavras de ordem enchiam a praça de ruído indistinguível, como uma imensa mole palpável de som que se brandia como a maça dum qualquer herói de cavalaria dos tempos de antanho. Era uma força incomensurável que se estendia pelas artérias da cidade. Da praça espalhavam-se pelas ruas e ruelas, como sangue coagulado que dificilmente fazia a tarefa de transportar o oxigénio. Os coágulos, ao invés, esclerosavam a vida da urbe. Era o grito da cidade. Era o estertor último duma vida em caos, sem rumo definido e sem vontade própria que a guiasse.
Os polícias tentavam a custo interromper a esclerose de se aproximar demais do reduto final das forças da ordem... mas eram vãos os esforços. Qual areia da praia submergida pela maré, os polícias foram empurrados, separados, dilacerados e engolidos na turba-multa tornando-se por um qualquer processo ímpio de osmose eles próprios parte integrante do grande coágulo que assoberbava a praça. De repente o reduto ficava exposto à ira das gentes.
Caras distorcidas, rostos em esgares maldosos, vozes vociferantes, cuspo saltando dos lábios gretados, por entre dentes roídos, olhos injectados de ódio sanguinolento, braços agitando-se em frenesim destruidor, pernas martelando a calçada, irromperam tudo e todos por entre as arcadas vetustas do palácio, levando em frente a ordem e os papéis burocráticos, signos duma instituição ordenadamente prazenteira, puída pelos séculos de inacção, suavemente escondida atrás da teia dos processos erguidos em nome duma qualquer ordem mas que afinal nada mais eram do que barreiras levantadas, quais escolhos na preia-mar, à passagem do indivíduo. Esse mesmo indivíduo que cansado da inoperância se tinha junto em turba-multa e que arrancava neste momento fulcral, ao sistema que tanto o detivera, as rédeas do futuro.
E assim se depunha um sistema e se instaurava outro. Quebrava-se a corrente dos tempos. Lá para a frente seria de novo soldada a corrente em novas fórmulas e critérios abrangentes, pelos cabecilhas da turba-multa, que fazendo por esquecer o passado apresentavam-se em novas roupagens. Idênticas às anteriores. Apenas mais suaves e subtis e com uma nova linguagem. Adormeceram os intelectos. Apagaram a luz da razão. Forneceram a droga soporífera em doses maciças controladas com punho de ferro envolto em luva de pelica. Perante luzes foscas e tremeluzentes o indivíduo perde-se em baba e acalma-se no ímpeto da juventude, dando lugar a uma permissividade pacata, feita de prime-time.
Longa vida ao Império da TV!
R. Loureiro, 2005/04/12
*O título é uma referência directa ao livro de ensaios por Harlan Ellison. Deve ser entendido como homage.