Mrs. Krups e Mr. Vandemar *
João Ortega, miúdo de oito anos, mora com os pais no 2º esquerdo do nº 26 dos Prazeres à Lapa. No futuro, quando a realidade da quotidiana vivência neste prédio não passar de uma ténue e descolorida lembrança no seu cérebro, o Joãozinho terá sempre na recordação a Sra. Krups como a velhinha simpática do 3º direito que de vez em quando lhe oferecia chupas. E, se ao rapaz pedissem amanhã na escola para fazer um desenho da Sra. Krups, ficariam espantados não com a figura da mulher si, pequenita e atravancada, mas com a sombra que o Joãozinho, não fazendo ideia porquê, lhe hipoteticamente pintaria - uma sombra de abutre. São instintos certeiros, como viremos daqui a pouco a saber.
Para a D. Carmim, porteira, ocupante da Cave esquerda, o Sr. Vandemar sempre lhe pareceu uma pessoa extremamente taciturna. Reservado e distante, homem de nunca olhar os outros nos olhos, para além dos habituais bons-dias, boas-tardes e boas-noites, a D. Carmim nunca lhe ouviu mais do que "Hum"s, "Ahum"s, e "Mmmm"s da boca para fora. Não fosse pelo facto de já lhe ter visto a língua em duas ou três ocasiões - possivelmente quando o Sr. Vandemar a cumprimentou com os tais "bons ou boas qualquercoisas" - a D. Carmim diria que um gato lha havia comido. Estranho casal esse, a Sra. Krups e o Sr. Vandemar; ela uma velha encardida, e ele um cepo rijo. Casados vai bem para umas bodas de diamante...
Aos olhos do Sr. António Malmequer, a Sra. Vandemar é uma jóia de pessoa. Excentrica, de facto, mas não deixa de ser uma jóia por causa disso. Sempre que se cruza com ela no corredor comum (o Sr. Malmequer mora no 3º esquerdo) ou no elevador, a Sra. Krups pergunta-lhe atenciosamente pela saúde, pela esposa e pelos filhos. Mais: normalmente, de duas em duas semanas, a Sra. Krups bate-lhe à porta para oferecer umas "empadas de galinha e uns rissoizitos acabados de fritar". E que delícia, aquelas empadas. Não duram para duas refeições.
Pedro Góis, estudante universitário de pais abastados, oriundo de Traz-os-Montes, é arrendatário do apartamento do 1º esquerdo. Não poucas vezes, quando regressa das aulas, à tardinha, o Sol já do outro lado do monte, o Pedro vê o Sr. Vandemar a enfrascar-se na tasca da esquina. Já deu com ele a cambalear pela rua, apoiando-se nas parede e nos carros estacionados ao longo do passeio. E quando o Sr. Vandemar repara que o estão a observar, saca da boina e faz uma vénia, "M'to boas tarde, patrão. A vida? Vai bem? Os estudos?" É sempre a mesma coisa. E o Pedro tem pena; o raio do velho está sempre bem disposto - nunca o viu irritado. Segundo a D. Carmim, não se lhe conhecem notícias de violência doméstica. E lá está, volta e meia aparece-lhe a Sra. Krups à porta, com uma travessa carregada daquelas delicias de galinha - se a mulher levasse pancada, nem sonhar que punha tanto amor na cozinha.
A D. Gertrudes, inquilina do 2º direito, mulher beata de profunda dedicação religiosa, já conhece a Sra. Krups há uns vinte anos e tal. Conhece, é como quem diz, que a velha é mais reservada que um jackpot em máquina de casino. A D. Gertrudes vai todos os Domingos com a Sra. Krups à missa na igreja do bairro. Ao longo dos dez minutos de caminho, o discurso pouco varia: ele é a telenovela das onze, ele é o governo que só faz disparates, ele é o frio que se vem sentindo desde que a hora mudou. E se fizéssemos as contas às vezes e aos anos que estes minutos todos somam, para cá e para lá, ora de casa para a igreja, ora da igreja para casa, das duas uma, ou depressa nos afundaríamos nas parcelas da operação, ou rapidamente nos perderíamos como para os carneiros do sono. E todos os Domingos, dever católico cumprido, antes de em suas casas entrarem, antes de se despedirem "até para a semana, fique bem vizinha", lá estão as duas senhoras a trocar delícias culinárias - vai para lá compota de gengibre e hortelã, de lá vêm seis pasteis de massa tenra, desses que me cheiraram ontem há noite na escada, quando fui pôr o lixo na rua.
O Sr. Antão, 1º direito, reformado, viúvo, passa os dias a bater cartas no jardim da Conceição. Ele e mais um grupo de sobras sociais. É lá que se sente bem. Joga à sueca e ao dominó, joga e espera, espera e joga. Vão falando de futebol, que as mulheres já a vontade não atinge. Volta e meia o Sr. Antão joga às cartas como Sr. Vandemar, outra presença assídua naquelas tardes de fim de vida. Quando ganha, o Sr. Vandemar faz "Ahem", e põe um sorriso desdentado de boa disposição; quando perde, faz "Hum", e afunda um pouco mais a boina na cabeça. Então vizinho, como vai a vida. Cá nos vamos, cá nos vamos. E o Sr. Antão fica então a pensar a que é que o Sr. Vandemar se refere ao certo.
A Sra. Krups e o Sr. Vandemar são primos, não lhes estranhemos pois a diferença no apelido. Se calhar é por isso que o Tristão, o filho, nasceu com uma cara tão chata. O Tristão tem vinte e três anos, nunca foi amigo da escola, e não sabe quantos são um e um (uma vez respondeu à professora que eram pardais). Dói só de olhar para o moço. Parece quase que levou com uma porta em cheio no meio do nariz. Tem a testa alta, uma cara esguia e as orelhas salientes, e imagina-se-lhe uma cicatriz à Frankestein em volta do pescoço. O Tristão trabalha, mas nunca ninguém o vê entrar ou sair de casa; Oo Tristão trabalha de noite. O padre lá da paróquia, por piedade aos pais, arranjou-lhe trabalho na morgue do cemitério. É de lá que o Tristão, todo ele sorrisos de amor fraterno, traz a carne para a mãe fazer os rissóis.
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* Nome dos personagens vagamente inspirados no livro "Neverwhere", de Neil Gaiman