Postby Samwise » 20 Apr 2010 15:38
Observem, camaradas, o comandante do navio com atenção.
Um náufrago esfarrapado, com uma barba de cinco dias e sintomas evidentes de desidratação, acaba de ser içado a bordo e descansa deitado no convés, de olhos fechados e barriga para cima, a cabeça apoiada no colo do chinês da lavandaria – este que agora lhe passa as mão pelos cabelos, como que a reconfortá-lo, dizendo-lhe que o pesadelo telminou.
Vindos do salão-restaurante, chegando ao convés em vagas sucessivas que parecem não ter fim, os passageiros do navio formam uma roda em torno do acontecimento. Atropelam-se para ver o que se passa. As informações e as manifestações de perplexidade passam de boca em boca, do centro para a periferia, as cabeças a virarem-se para trás numa coreografia de grupo que parece ensaiada tal é o acerto no sincronismo, - gestos que se repetem a cada suspiro, a cada lamber de lábios gretados do moribundo. Lá em baixo, amarrada à escada extensível, a flutuar de encontro ao casco da Esmeralda, a carcaça de um bote quase desfeito baloiça na ondulação.
Mas observem, camaradas, o comandante com mais atenção.
O comandante, que até há poucos minutos era todo ele uma estátua de confiança e boa disposição, ajoelha-se junto ao náufrago, recolhe uma das mãos deste entre as suas, e pergunta-lhe suavemente quem é e de onde vem. O miúdo de apelido Baptista, que chegou ao local logo após Ping Li, deita as mãos à cabeça, revira os olhos nas órbitas, e disfarçadamente atira para o ar se não valerá a pena chamar o médico de serviço, ao que Picado se levanta num pulo e berra aos imediatos: "Chamem o Dr. Lopes, chamem o Dr. Lopes! E rapidamente, que o caso é de vida ou morte". Enquanto todos seguem o gesticular frenético do comandante, e enquanto alguns membros da tripulação tentam atabalhoadamente dar com os walkie-talkies que deviam ter presos ao cinto, um sorriso matreiro surge e desaparece no rosto do náufrago, quase revelando a dentição branca e afiada que aguarda agora novas presas. É um gesto-fracção-de-segundo, quase como um impulso nervoso, que passa despercebido a toda aquela plateia.
"Talvez queila água," sugere o chinês, ao que Picado pára fazer figura de malabarista de circo e volta focar a vista naquele trapo de gente. "Água? Sim, está claro, água. Mas não pode ser muita, senão o organismo rejeita e pode entrar em colapso. Alguém que traga água do restaurante! Já!!!". Alguns dez ou vinte passageiros (ninguém conta ao certo), acabados de chocar contra as costas da última fileira deste monte de curiosos, aproveitam o balanço do ricochete para inverter a marcha e correm de volta para local de onde chegam.
Observem, camaradas, o comandante, desta feita com toda a vossa atenção, para que o Korda e a sua felina cúmplice, os rostos perdidos no anonimato da mole compacta, possam aproveitar para explorar em paz e sossego, longe do olhar curioso, os bolsos interiores de casacos e calças dos passageiros em seu redor.
O náufrago sorve a água em pequenos goles, sentindo breves queimaduras a caírem-lhe o estômago. Apoiado em Ping Li, que não o larga do braço por um momento, ensaia levantar-se e escorrega – a multidão leva as mãos à boca e é toda ela varrida por “Aaahs” e “Ooohs” -, consegue ao segundo impulso – e a multidão, já recomposta do susto, afasta-se e abre um carreiro estreito de acesso ao interior do navio. Ao fundo está um tipo com mau aspecto encostado à ombreira de uma porta, prestes a estatelar-se no chão vergado pelo peso do álcool. Larga o copo da bebida e endireita-se como se lhe tivessem enfiado uma mola coluna acima. A visão do náufrago devolve-lhe a sobriedade mais depressa que um duche frio. Sem perder tempo, afasta-se para dentro do navio e desaparece nas entranhas do gigante.
Observem, camaradas, o comandante a seguir atrás do cortejo em direcção à enfermaria, tentando convencer as pessoas a aguardarem lá fora. Corredores onde mal se podem cruzar duas pessoas em sentidos opostos são agora o cárcere de cento e tal passageiros em alegre romaria de cochichos, espevitados por haver novidade no horizonte, sabendo que o caso não é tão grave como aparentou ao princípio. Bendita ignorância.
Observem tudo, camaradas, observem com atenção, enquanto a lua cheia, esse olho de Deus cego de cataratas, nos observa por seu turno a todos.
Guido: "A felicidade consiste em conseguir dizer a verdade sem magoar ninguém." -
8½ Nemo vir est qui mundum non reddat meliorem?My taste is only personal, but it's all I have. - Roger Ebert
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