Samwise wrote: ---
Miguel saiu do carro incrédulo. Sentia-se asfixiado pela pujança do airbag. Jactos de fumo cinzento abandonavam o capot, completamente desfeito, do seu carro. O Passat afastava-se lentamente, parecendo zombá-lo, na segurança da noite.
Capítulo 3Tobias tentou a ligação pela enésima vez. Sem resultado! O palhaço do Miguel desligara o telemóvel. Gostava de saber o que ia na cabeça das pessoas para usarem telemóveis e terem-nos sempre desligados. Cambada de anormais! Incompetentes. Se um gajo queria as coisas bem feitas tinha de ser ele próprio a fazer tudo. Lá diz o ditado: quem quer vai, quem não quer manda. E era bem verdade.
Tinha a cave toda preparada: luzes, vídeos, cama, até um CD dos Nine Inch Nails para dar ambiência à coisa. Só faltava mesmo a actriz e o palhaço do Miguel.
Desesperado por ver as horas a passarem saiu para o exterior do solar. A Lua iluminava de tons argênteos a frontaria da casa, um velho solar do século XIX, antiga pertença do Duque de Vilafróis que o perdera para um qualquer agiota por conta do seu vício do jogo. Sentiu o cascalho fresco trilhado debaixo das botas mexicanas. Pegou de novo no telemóvel e marcou o número novamente.
***
Miguel olhou em volta da planície alentejana. Algumas nuvens acastelavam-se encobrindo parcialmente a Lua mas ainda assim conseguiu ver ao longe as luzes de uma habitação. Teria de cortar pela charneca para lá chegar. Só esperava não meter o pé nalguma toca de coelho. Era só mesmo o que lhe faltava ter um tornozelo inchado a uma hora destas e num local destes. Procurou no bolso do casacão o telemóvel e sentiu um calafrio. Perdera-o! Na confusão da perseguição devia tê-lo deixado lá atrás, junto ao corpo da outra gaja que era agora um barbecue. Merda! A noite ia de mal a pior. Era bom que os cabrões lá daquela casa lhe abrissem a porta senão iam ter de se haver com um sacana muito, mas muito, lixado.
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O Malaquias nem queria acreditar. Logo na sua primeira noite de patrulha daquele mês e dava com um incêndio no mato? O clarão atraíra-o até junto da Nacional 10 na bifurcação para Cuba e que encontrara? Um incêndio que alastrara pelo mato ressequido. Ligara à Central a informar e aguardava a chegada dos bombeiros.
Malditos descuidados. Na certa fora uma beata lançada janela fora. Ai se ele apanhasse alguém a fazer isso. Além da multa ainda lhe aplicaria um valente sermão. Malaquias gostava muito de sermões. Os seus camaradas do Comando diziam que era por ter aquele nome, era uma coisa frenética ou genética ou lá o que era. Enfim, uma coisa que estava na massa do sangue. Tentou avaliar a olho nu a extensão do incêndio. Andou pela berma fora e a certa altura pisou algo que reclamou com o som de plástico quebrado. Focou o feixe da lanterna para o asfalto e viu um telemóvel semi-rachado a seus pés. Estranho. Que havia condutores que aventavam beatas pela janela fora sabia ele, agora telemóveis?
Muito estranho. Voltou ao jipe a buscar um saco de plástico transparente. Estava totalmente imerso a recolher o telemóvel para dentro do saco de plástico, com cuidado para não lhe tocar, nem o esfregar, quando chegou a primeira auto-bomba.
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Zeb estava preocupado. Já passava das onze e meia e nada dela chegar. Um fino pingente de gelo arrepiou-lhe a espinha. Mas quantas vezes tinha ele dito que não gostava que ela fizesse aquele caminho de noite na mota? Quantas vezes? Tinha uma premonição de que algo acontecera. Ainda não queria tornar esse «algo» em facto concreto. Preferia para já que o «algo» fosse abstracto. Distante. Talvez assim não passasse de mais um «algo» como tantos outros em tantas outras noites.
Destravou a cadeira de rodas e percorreu a pequena distância entre a cozinha e o hall de entrada. Olhou pensativamente para o telefone. Esperaria um pouco mais antes de telefonar para a GNR.
Naquele preciso instante, a quilómetros dali, Sara enche a banheira de água quente e seca as lágrimas que teimam em lhe escorrer pelo rosto abaixo.