Adoro quebrar promessas

Prontos para quem não quiser ler aos bochechos basta ver se o post indica (continua) e ignorar até que venha um post com o termo FIM

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(continuação)
Outro dia, outra miserável e infindável sucessão de actos rotineiros. Hoje então é dia de check-up com o palhaço do médico-baleia. Pode ser que com sorte o gajo não me queira ver o sangue. Se há coisa que detesto é ser espetado para me tirarem o sangue. Já bem basta o que me chupam da reforma, ainda chuparem-me o sangue, pois, pois. Uma coisa boa do check-up é que vou ter uma oportunidade de estar com a enfermeira. Tenho de falar com ela. Não é que eu não tenha gostado de falar ontem com a gaiata mas daí a tornar isso um evento social com hora marcada vai um grande passo. Além do mais se a miúda contar á mãe que se encontra comigo às tantas da noite não vai demorar muito à gaja a somar dois com dois e ficar com tabaco. E então é que fico de quarentena na certa. Isto quando um gajo chega a velho é como quando é puto. Tem uma data de gente a pensar que manda nele. Por alguma coisa dizem que é a segunda infância. É que não é para menos. Temos mulheres a mudar-nos as fraldas, a dar-nos a papa à boca, a limpar-nos o queixinho a ajeitar-nos a caminha. É do caraças!
Como isto é um lar de luxo não temos nós de ir para uma salinha de espera aguardar enquanto o senhor doutor nos atende um a um no consultório. É o gajo que vem ter connosco ao quarto. Um luxo, digo-vos! Claro que é tudo pago, e com língua de palmo. Mas se pensarmos bem para que queremos nós velhos jarretas o dinheiro? Para o deixarmos aos cabrões dos descendentes que não dão um peido por nós? Ao menos sempre o vamos queimando em nosso proveito. Ah, se eu pudesse queimava-o todo. Os faraós é que a sabiam toda. Estouravam o tesouro real em brutos túmulos e ainda levavam com eles a criadagem toda e os cavalos. Para os lorpas só ficava uma pirâmide como quem diz: Queriam? Pois tomem!
À hora marcada lá entra o baleia mais a nazi. Pela primeira vez em quase dois anos reparo melhor na cara da mulher e leio com atenção a placa do nome. A. Fátima. O A. deve ser de Assunção, esta tem mesmo cara de vir duma daquelas famílias todas religiosas que vão anualmente a Fátima em peregrinação e de preferência de joelhos e nada como ter um dois-em-um nos nomes. Já a cara nada tem de beatífico. É daquele tipo de caras capaz de fazer o leite azedar e não me admirava nada que volta e meia fosse mesmo o que sucedia tal o gosto do café com leite da manhã que aqui servem. Por mais que procure não encontro traços familiares com o rosto da Vera. Mas que pode isso querer dizer? Nada. Na volta a miúda sai ao pai. Dou voltas à cabeça de como começar a conversa mas entretanto já o baleia me mandou tirar a camisa do pijama para me auscultar. O gajo começa a lenga-lenga do inspire, expire e vai mudando o raio do estetoscópio de lugar em lugar. Porra que bem podiam aquecer esta merda antes de a encostarem no pessoal. A Fátima nazi está por perto com aquela cara severa de quem só espera uma ordem de eutanásia para executar sem cerimónias mais um velho. Com o meu ar mais cândido pergunto: “Então a sua filha não teve dificuldades em dormir o resto da noite?” A mulher olha para mim como se me tivessem acabado de nascer um par de cornos e uma cauda bifurcada. Mas depressa se compõe e responde: “O senhor Américo hoje está bem disposto já estou a ver.” E milagre dos milagres esboça um sorriso. Só pode estar a disfarçar por causa do médico. Posso estar velho e caquético mas ainda estou lúcido e percebo que devo ter acabado de meter a pata na poça. Vai na volta as regras do lar proíbem a presença de familiares nas instalações. E eu ia desmascarando a mulher. Bem, está na hora de representar o velhinho senil. “Ó desculpe, querida, estou a fazer confusão. Ontem estive a ver aquela série e já ando a confundir tudo. Sabe, aquela que também tem uma enfermeira. Bem, se calhar não sabe... deixe lá... não importa...”
Coitada da mulher parece que ainda ficou mais confusa. Quando a apanhar mais logo à tarde a jeito explico-lhe tudo.
Depois do check-up é o regresso à rotina mais rotineira possível. Passeiozinho no jardim, conversas da treta com os outros mortos-vivos cá do sítio, cada um com grandes dissertações sobre futebol e política como se por causa da idade estivessem da posse da chave da sabedoria e mal sabendo que pode-se ser velho sem se saber nada. Basta ver os analfabetos. Chegam a velhos e não é por isso que aprendem subitamente a ler e escrever. A sabedoria aprende-se não é algo genético-temporal. Mas que fazer. Deixá-los alegres e contentes a discursar sobre tudo e mais alguma coisa com a certeza de quem sabe as respostas todas. E alguns velhos aqui têm cá um egocentrismo que se o egoísmo fosse merda tinham de ter uma ETAR só para eles. Enfim. Depois do passeiozinho higiénico – é mesmo assim que vem descrito na brochura de apresentação do lar, passeio higiénico – segue-se a passagem pela sala comum enquanto esperamos que sirvam a forragem, perdão o almoço. Neste entretanto não vejo a enfermeira em lado algum. Deve andar ainda nas rondas com o médico-cachalote. Mal contados somos uns cinquenta e alguns já em tão mau estado que um check-up é coisa de demorar. Penso escapulir-me ao andar de cima para ver se encontro a Vera mas aquilo deve estar cheio de administrativas e é um bocado zona interdita aos velhadas. De qualquer maneira tenho de raciocinar que a miúda deve estar é na escola. Provavelmente a mãe leva-a de manhã pelo portão que fica nas traseiras, um portão apenas destinado ao pessoal. As visitas essas entram pelo portão principal como se fossem VIPs, mas lá atrás do casarão passando os jardins fica um portãozinho que dá para uma estrada de gravilha. Numa das minhas voltas nocturnas ainda cheguei a pensar em sair por ali já que o portão principal é fechado a cadeado todas as noites, para nossa protecção dizem eles, mas mais na certa para que a nenhum velhadas com esquizofrenia lhe desse na bolha fugir do lar, mas desisti da ideia assim que vi o estado da estradinha. O mais certo era meter o pé nalgum buraco e acabar com um entorse ou, pior, uma fractura. Isso explica o facto de eu nunca ter visto a rapariga. E além disso deve ser mesmo uma das regras da casa não terem cá família. Se bem que não faça sentido. Se a enfermeira está cá de permanência como é que a administração espera que ela faça coma filha? Se calhar eu é que estou a confundir tudo. Mas a quem perguntar? Não posso concerteza ir aos escritórios falar com o gerente do lar e perguntar qual a política em relação ao pessoal. Ou posso? Custa-me pensar que ainda acabava entalando a enfermeira. A mulher embora pareça uma nazi nunca me fez mal algum e é até bastante profissional. E se há coisa que admiro é o profissionalismo. Não, o melhor que tenho a fazer é falar com ela mais discretamente. Realmente não sei o que me passou pela cabeça para desatar a falar dela com o médico presente. É daquelas coisas, um gajo nem pensa nas consequências. Pensar nas consequências faz-me sempre voltar a pensar na Sofia. E quando penso nela fico entre o melancólico e o nostálgico. Porra fico triste é o que é!
A hora do almoço vem e vai e o gado depois segue, arrastando-se e ruminando os restos, para a sala comum. O grupo de zombies habitual das cartas desafia-me para uma jogatana e eu, mais para passar o tempo que outra coisa, aceito o desafio. Pelo canto do olho vou vendo se vejo a enfermeira a passar pelo corredor. Mais hora menos hora deve vir aqui espreitar à sala a ver se está tudo nos conformes não se vá dar o caso de um de nós morrer sem avisar.
O tempo passa e nada. O que precisava agora mesmo era dum cigarrinho. Podia dar um pulo à casa de banho... mas depois a mulher passa por aqui e eu perco a chance de a interceptar. Além disso como é que ia ao quarto buscar os cigarros? Estamos vigiados e quase proibidos de ir aos quartos durante o dia. Os tipos devem pensar que algum de nós ainda lhe dá um fanico para lá e fica ali horas a apodrecer. Morrer com testemunhas é sempre melhor. Iliba o lar de acções em tribunal por grossa negligência. Também não é o fim do mundo se não conseguir falar com a mulher. Aliás nada me obriga a ir ter com a miúda mais logo à noite. Por acaso sempre me achei um homem de palavra mas há limites. Não vou ficar para aqui a remoer o faltar a um compromisso que a bem ver nem sequer assumi. A miúda é que pensou que eu ia aparecer e sumiu-se. Nem me deu tempo a responder. Tecnicamente não estaria a faltar à minha palavra.
E enquanto racionalizo tudo isto sei, no fundo do coração, que à hora marcada lá estarei. A curiosidade é que matou o gato segundo dizem. Verdade, verdadinha é que esta quebra na rotina é muito bem vinda e a miúda impressionou-me favoravelmente. Tem uma certa aura o raio da gaiata. Por alguma razão tenho passado o dia todo a pensar nela. E quanto mais penso nela mais impaciente fico com o passar das horas. Que melaço do caraças! E que raios se passa comigo que pareço um adolescente a tremer antes do primeiro encontro? Isto há com cada coisa. Agora depois de velho... vê lá se te acalmas ó velhadas, ainda tens outra trombose aqui no meio da sala comum. Isso é que era! Muito mais interessante que a telenovela da TVI, ó se era. Se há coisa que os velhos gostam de ver é outros a marcharem à frente deles. Dá-lhes a sensação de terem escapado por pouco. É como se o Ceifeiro andasse aqui no meio da maltesga e volta e meia, zás! Lá vai um, e sempre que esse um calha a não sermos nós... que alívio do caraças!
As horas vão passando lentas, como alcatrão a escorrer. É o jantar, é o serão, é o comprimidinho das horas, é o recolher aos quartos. E finalmente parece que começo a reviver. Ter uma vida dupla deve ser assim, durante o dia usa-se uma máscara, à noite usa-se a face real. Quando tinha uma amante, de quem muito provavelmente a minha esposa sabia mais do que eu, tive um indício do que seria uma vida dupla mas depressa me cansei de toda aquela correria e das desculpas esfarrapadas de parte a parte e acabei por me divorciar. Nunca fez o meu estilo estar preso a uma pessoa nem ter de dar grandes satisfações e de facto para mim o casamento era pouco mais que uma prisão. Engraçado que depois do divórcio também larguei a amante que já se vinha colando demais para o meu gosto. Coitadas, nenhuma delas faziam sombra à Sofia. Da parte de cima do armário puxo o maço de tabaco, tiro um cigarro e o isqueiro que meto dentro do bolso do roupão e sento-me na borda da cama à espera que os velhadas caiam no sono e o vigilante se aconchegue no cubículo.
(continua)