Samwise wrote: Miguel aparece na sala. Traz um balde com água pela borda. Traz também um cutelo e uma faca de cozinha. Despeja o balde contra a cara de Zeb. Este acorda em sobressalto.
'É verdade que voçês não sentem nada da cintura para baixo?' Miguel está em êxtase... ajoelha-se aos pés de Zeb e e começa a acariciar-lhe uma das pernas, junto ao calcanhar... A saliva escorre-lhe para canto do lábio humedecendo a ponta do cigarro ainda por acender.
Levanta o braço direito e trá-lo de volta, num gesto brutal. A resistência do osso, impotente face à pancada do facalhão, fá-lo recordar os seus tempos de talhante aprendiz… Vermelho… Vermelho…
O grito lancinante recorta a noite e mesmo por cima do ruído da chuva é suficientemente intenso para despoletar a acção imediata dos dois homens. Como que impelidos por uma mola, Malaquias e Tomé precipitam-se em direcção à porta. Malaquias é o primeiro a entrar e assenta a pistola sobre um homem desgrenhado e com ar de louco que empunha ameaçadoramente um facalhão tingido de sangue:
- Larga já a faca e deita-te no chão! – ordena peremptoriamente. Por detrás dele Tomé irrompe e momentos depois circula para se postar ao lado do homem. Um relance mostra-lhe que Zeb, o velhote paraplégico, recebeu dois cortes que sangram profundamente, um na zona do calcanhar e outro na virilha. Sem pensar Tomé desfecha uma coronhada na cabeça do homem que ainda olhava para os dois com ar aparvalhado. O corpo tomba inerte qual saco de batatas.
- Bolas, Tomé! Não precisavas ter feito isso. Não falta agora ainda vamos ter um juiz à perna por uso de violência desnecessária. Sabes como isto é. – Malaquias parece mais preocupado com o estado de saúde do estranho do que com Zeb, mas Tomé desculpa-o. Ele sempre fora assim, algo confuso nas prioridades. Pelo seu lado Tomé começa a desatar os nós que prendem Zeb. É imperativo estancar a perda de sangue.
- Ouve lá Madalberto arranja aí um cinto ou uma coisa dessas. Temos de fazer um torniquete ao Zeb senão ainda se vai desta para melhor, – e virando-se para este último, - desperta Zeb, aguenta-te aí homem do caraças, ‘tamos aqui p’ra te ajudar! Aguenta só mais um pouco homem!
A noite ruge e entra pela porta escancarada, arrastando consigo os últimos vestígios dum mundo são e ordenado. Tudo é desespero na pequena sala enquanto o tempo escorre inevitavelmente. Muito antes da ambulância conseguir chegar, chamada de urgência pelo Malaquias, Zeb abandona este mundo sem sequer saber que a sua adorada Claúdia o precedeu umas horas antes apenas.
O tenente terminou de recolher os depoimentos do Tomé e do Malaquias e dispensou o primeiro. Depois pediu ao Malaquias para ir com ele até junto do Saab. A equipa forense já terminara a recolha dos vestígios e as fotos, o médico-legista já terminara os preliminares nos corpos e por momentos até a noite se acalmara dando lugar a um vento gélido que abanava das folhas dos sobreiros umas gotas de água por sobre as cabeças dos homens.
- Cabo Malaquias pelo que eu entendi a rapariga deu com uma pedrada na cabeça do tal Rudolfo, certo?
- Sim, meu Tenente!
- E depois?
- Bem, penso que depois foi como o Tomé lhe contou meu Tenente. A rapariga desfaleceu e ele acabou por ter de a meter dentro do carro e ia até ao Casal Moimenta tentar perceber porque raios o tal Rudolfo queria tanto lá ir. E claro, pedir ajuda. Sabe, o Tomé nunca foi homem de usar modernices por isso telemóveis não é com ele.
- Sim, sim, isso já eu percebi. O que eu queria que você me explicasse é como é que uma rapariga que está às portas da morte conseguiu ter forças para matar um homem feito com uma pedra.
- Uma pedrada na cabeça... se apanhar bem o sítio...
- Pois, se apanhar bem o sítio. Entendo. Não vamos complicar as coisas. O tal Miguel também nos há-de contar algumas coisas por certo. Não acha, cabo?
- Sim, meu tenente!
- Pode ir. Está dispensado.
- Certo, meu tenente. – Malaquias afastou-se a pensar que pelos vistos Tomé não lhe contara tudo. O médico-legista anotara pelo menos três pancadas desferidas na cabeça do Rudolfo. E porque ainda pensava nele como Rudolfo? Os documentos diziam ser o Tobias Carvalho e segundo parecia tinha um cadastro do tamanho do braço dele, o que não era de admirar dadas as circunstâncias. Restava esperar que o exame pericial feito com mais cuidado no Hospital não viesse a lançar suspeitas sobre o Tomé. Ia ser do carago se tal acontecesse, ainda para mais depois do Miguel ter sido apreendido com a mandíbula inferior estilhaçada por acção da coronhada. Na volta ainda ia sobrar para eles! O mundo era assim mesmo! Dois inocentes mortos e quem se lixa? O mexilhão, pois claro!
- A propósito cabo Malaquias! – a voz do tenente arrancou-o às meditações e fê-lo estacar. – Aquele tal incêndio, sabe que os bombeiros descobriram um corpo lá no meio? Cá para mim este Miguel andou entretido esta noite.
- É uma rica embrulhada meu tenente!
- Ó lá se é! E com isto tudo daqui a nada é dia e ainda vem para cá uma equipa de reportagem da TVI. Gostava de saber quem avisa aqueles abutres...
- Eu disso não sei nada, meu tenente.
- Claro que não, claro que não...
Ao longe uma luz diáfana tentava romper o manto de nuvens. O chilrear das aves, imperturbadas, começou a fazer-se ouvir na charneca. Era o despontar de um novo dia. E ignorante dos pequenos dramas que se desenrolavam o Sol vai lentamente descrevendo o perene arco da sua viagem pela abóbada.
*
O táxi pára à porta do prédio do Miguel e Sara sai apenas para dar de caras com dois homens que se aproximam vigorosamente dela. Um deles mostra-lhe uma insígnia que ela mal tem tempo de ver e identifica-se como Inspector Martins.
- A senhorita é a Sara?
- Sou sim, - responde ela nervosamente. Aqueles homens ali, logo agora, demasiadas coincidências. Sara não acredita em coincidências, nem destinos nem nada disso. É tipicamente racional e lógica. O pior é que o mundo desde há umas horas atrás que deixou de seguir as linhas-mestras da lógica. – Que se passa? Estou algo cansada... a minha amiga faleceu e...
- É precisamente por isso que aqui estamos e que desejamos falar consigo. Mas aqui não se fizer o favor de nos acompanhar... – e suave mas firmemente pegou-lhe no cotovelo e encaminhou-a na direcção de um carro estacionado. Momentos depois seguiam em direcção à Gomes Freire, o carro afastando o trânsito quase por magia em virtude da luz azul que o outro homem colocara no tejadilho.
O edifício da Polícia Judiciária é tudo menos imponente. Encafuado entre uma faculdade e a esquina duma movimentada rua milhares de pessoas passam por ele diariamente pensando tratar-se meramente dum local onde se renova o bilhete de identidade. Mas depois de se percorrerem os iluminados corredores da aba lateral, descer-se para o subsolo, passar-se por diversas portas blindadas, penetra-se no verdadeiro coração da PJ. Era agora numa sala forrada do tecto ao chão a placas de papelão comprimido e furado que como que engolia todos os sons que a Sara estava sentada. Recusara o café e o cigarro. As mãos tremiam-lhe violentamente. Um acre sabor a bílis vinha-lhe, vezes e vezes sem conta à garganta e as lágrimas teimavam em despontar. Pensar que a Catarina morrera era algo que ela teria tido dificuldade em ultrapassar mas conhecer todos os detalhes mórbidos e ver o corpo dela naquelas fotos. Era demais. Demais. Não pensava conseguir aguentar. E no fim de tudo o Martins dissera-lhe que tinha sido desejo expresso da Catarina de que se lhe acontecesse algo que ela soubesse da verdade. E que lhe guardasse os pertences. Foi assim que Sara ficou a saber que Catarina sempre a amara. Até ao fim. Amara-a tão intensamente. E ela feita estúpida cortara a relação. Era o que mais lhe doía agora. Ter rejeitado aquele amor. Não Ter estado com ela no último dia. Não sabia se a dor alguma vez desapareceria.
Como que numa nuvem ouviu o Martins falar-lhe do psicopata que vendia snuff movies na net e do compincha que lhe «arranjava» as mulheres. Quanto mais o ouvia mais mergulhava num mar negro e profundo de mudez. Estava paralisada perante a profundidade da malícia de uma pessoa que julgara conhecer. Tinha feito apenas um pedido. Mas o Martins dissera-lhe que até ordem em contrário o Miguel ficaria isolado. O interrogatório iria ser demorado e aquelas coisas das pessoas poderem ver os interrogados pelos vidros duma via era coisa só dos filmes e séries de TV. Mas assegurara-lhe que havia material suficiente para enfiá-lo atrás dumas grades para o resto da vida. Mas Sara não estava tão segura disso. Afinal a justiça, diz-se, é cega. Tal como a dor. E a vingança.
*
O funeral foi sóbrio. Apenas alguns familiares distantes de quem Sara nunca tinha ouvido falar. A cada momento descobria facetas ignoradas da vida de Catarina. Como tinha sido possível viver com ela dois anos sem ter conhecimento de todo um mundo de familiares, amigos e companheiros de trabalho? Teria sido ela que a tinha consumido tanto que não lhe dera espaço para a Catarina falar dela? Ser ela? Talvez. Havia tantas incógnitas. Tantas perguntas sem resposta. Os colegas de trabalho tinham vindo dar-lhe os sentimentos. Agradeceu-lhes sem bem lhes fixar os rostos e na sua memória recuou vezes e vezes sem conta aos momentos antecedentes, como um filme em replay eterno: de vestido negro e um chapéu com uma pequena renda muito fina da mesma cor que lhe cobria os olhos, percorreu a alameda calcetada com pequenas pedras beges e pretas, ladeada por grandes carvalhos despidos de toda a folhagem e por campas ornamentadas com os mais variados motivos fúnebres. Um pouco adiante, distinguiu a pequena e velha capela de pedra com grandes portas de ferro abertas para trás em tom convidativo. Enquanto fazia o resto do percurso que a conduziu à entrada da capela, fortes rajadas de vento levantaram as folhas mortas do chão em danças sinuosas quase lhe arrancando o chapéu, o pó a entrar-lhe nos olhos. Apressou-se para o interior da capela num passo cadenciado que fez ecoar no grande cemitério o som proveniente dos seus saltos altos. Ainda olhando para o exterior, contemplando o alvoroço tempestuoso que surgira, levantou a renda que lhe cobria os olhos e afastou o cabelo escuro da maneira tão sensual que era tão sua. Recuou e embateu num obstáculo que lhe travou as longas pernas, virou-se e não conseguiu conter um súbito grito que rapidamente abafou. O caixão aberto onde repousava o corpo de Catarina. Avançou por um dos lados da caixa de madeira para poder fitar melhor a sua namorada antes de lhe deixar o último adeus. Ergueu as duas mãos e lentamente dirigiu-as para o lenço transparente que cobria a face pálida e arroxeada da defunta, levantando-o cuidadosamente, destapou-lhe completamente o rosto.
FIM