Postby Pedro Farinha » 04 Mar 2009 14:06
A personagem não é bem literária ainda que se fale dela num best seller.
Ah, e trata-se da minha primeria ficção científica por isso não batam muito.
Como todos sabem o primeiro viajante no tempo foi a Bela adormecida. Claro que ela não se chamava assim, o verdadeiro nome dela era Aurora Gwendoline e entrou para história como um mito. Ainda hoje está para se saber como é que ela conseguiu. Claro que a palavra “hoje” não faz sentido nenhum. Para mim o “hoje” já não existe.
Quando no verão de 2009 se deu o grande apagão nos Estados Unidos e os sistemas redundantes da FreezerLife falharam, os vários corpos congelados de ricaços norte-americanos descongelaram rapidamente e foram submetidos a um aquecimento brusco que conseguiu pela primeira vez e por puro acidente descongelar um ser vivo congelado há vários anos sem que daí resultassem grandes mazelas. Claro que a maior parte dos congelados se tinham submetido a essa intervenção dado estarem doentes em fase terminal e acreditarem que quando os descongelassem já haveria cura para as suas doenças. Isso explica a maior parte das mortes. Mas os restantes indivíduos, quase todos pertencentes à mesma seita, saíram da FreezerLife após uma “viagem no tempo” de 7 anos.
Nessa altura lançou-se um forte debate académico sobre se se poderia chamar a essa experiência uma viagem no tempo. Se do ponto de vista do resto da comunidade eles tinham apenas permanecido congelados, do ponto de vista deles tinham saltado sete anos para a frente em que não tinham envelhecido. Para os outros tinha demorado sete anos, para eles um nada, adormeceram e acordaram: tinham viajado no tempo.
Foi com base nessa teoria, tendo-se lançado uma verdadeira moda até devido à crise em que se vivia e também como fuga a impostos ou a outros actos persecutórios que eu fui fazer a minha tese em torno da viagem no tempo. Em torno desse trabalho fui o grande descobridor da viagem no tempo da Aurora Gwendoline, pois nos novos moldes em que “viagem no tempo” tinha sido definido, era o caso mais antigo conhecido.
Com a bolsa de estudo que ganhei comecei a investigar a viagem no tempo para o passado em que métodos simples como a congelação não funcionavam. A ideia que me fez criar a actual cápsula que me trouxe até aqui teve origem num famoso livro de Júlio Verne – A volta ao mundo em 80 dias. Nesse livro, Phileas Fogg ao regressar a Inglaterra descobre que chegou um dia antes pois tendo feita a volta à terra no sentido contrário aos ponteiros do relógio, ao terminar a volta tinha poupado um dia. O sentido estava definido, tratava-se apenas de uma questão de velocidade e no ano de 2054 não era impossível ultrapassar essa barreira.
No entanto, talvez devido ao ar ligeiramente alucinado que me caracteriza, talvez pela incerteza quanto ao regresso, a verdade é que não consegui arranjar nenhum candidato sério a fazer esta experiência. Digo sério porque tarados e aficionados de ficção científica, desses que pululam nos fóruns cibernauticos sobre o tema, apareceram como ervas daninhas em campos de girassóis. Sonhava com um cientista, alguém capaz de fazer um registo descronológico da experiência e apenas me apareciam alminhas com ideias tão inconsequentes como registarem o seu dia a dia num blog, isto quando estávamos a pensar em viajar até à idade média.
À falta de melhor, vim eu. O facto da minha sucessão de amores mal sucedidos ter tido mais um marco, com o bater de porta da Ludmila também foi um grande incentivo. Aparentemente apenas a minha mãe ficou preocupada com o que me poderia acontecer e pediu-me para levar uma roupa quentinha porque no passado, muito antes do aquecimento global, devia fazer frio como o raio. Dito isto benzeu-se porque expressões como o raio não eram bem vindas na religião conservadora dela.
Infelizmente os cálculos para o controlo da duração da viagem, ou seja o número de voltas à volta da terra saíram furados porque me esqueci que à medida que entrava no passado a atmosfera ficava menos densa, reduzindo assim o atrito, esta é a explicação lógica que encontro para ter vinda parar a este tempo – o do jardim do éden.
Ontem (tenho de me desabituar de utilizar estas expressões temporais que começam a deixar de fazer sentido para mim) depois de esconder a cápsula, ou o que restava dela, dentro de uma gruta encontrei Adão e Eva a pescarem com as mãos num regato cantante aqui perto.
Olhei para eles, nus, e para mim com o meu fato espacial e percebi que os assustaria pelo que me despi também. É estúpido mas mesmo neste tempos primordiais, onde o estranho seria andar vestido, sinto-me desconfortável em andar assim. A pila bamboleando-se ao ritmo dos meus passos. As dores que sentia na planta dos pés forçaram-me a ir buscar o calçado e trouxe comigo, também, uma pequena bolsa onde tinha alguns bens de primeira necessidade e o pequeno gravador para onde tenho vindo a ditar esta experiência enquanto a bateria dura o que não deve ultrapassar uma ou duas semanas.
Apesar de estar nu como eles, o nosso aspecto não podia ser mais diferente. A minha pele muito branca e quase ausente de pêlo contrastava fortemente com o seu tom moreno e a quantidade incrível de pêlo que lhes cobre o rosto. Também a minha estatura era bem superior à deles embora Adão fosse mais musculoso do que eu malgrado as horas diárias passadas no meu ginásio.
Ao verem-me, ao contrário do que eu previra, o Adão não bateu no peito nem teve qualquer outra reacção que não fosse o da estranheza primeiro e da fuga depois. Já nesta época pré-histórica o medo do desconhecido atrofiava os homens. Eva, mais afoita, aproximou-se de mim após o que deu um guincho e afastou-se de novo ficando-me a espreitar atrás da vegetação densa.
Desejoso de estabelecer contacto, em vão tentei atraí-la fazendo gestos amistosos até que, frustrado e cheio de fome, sentei-me no chão duro sentindo a aspereza do solo contra o meu rabo pelado e comecei a ditar notas para o gravador. Ao guarda-lo ouvi o restolhar do plástico de um Mars que enfiara na bolsa e tirei-o agradavelmente surpreendido. Instintivamente olhei para a validade e verifiquei que tinha quase um milhão de anos de prazo, pelo que o abri e dei a primeira dentada sentindo a presença de Eva muito próxima. Aproveitando a oportunidade estendi-lhe um bocado que ela apanhou com os dentes e devorou com uma expressão de gula. Como lhe deve ter sabido aquele pedaço de chocolate, um sabor extraordinariamente novo. Rendida aos meus encantos, ou melhor aos do chocolate, aproximou-se e começou a coçar-me os cabelos, quiçá à procura de piolhezas. Essa massagem primitiva teve o condão de relaxar a maior parte do meu corpo e fazer entumecer a restante. Eva, atenta como todas as mulheres, reparou e num arregaçar de dentes pôs-se de gatas à minha frente oferecendo-me, ainda que com pilosidades em excesso, o que tinha de melhor.
Pensei que como cientista não deveria desdenhar nenhuma experiência nova e entreguei-me à mãe de todos nós sem me aperceber dos olhares sinistros que Adão me lançava por de cima da macieira onde se escondera. A maçã atingiu-me na nuca como se fosse uma pedra e acordei trancado nesta caverna, enregelado, e com uma rocha a barrar-me a saída. Julgo que a era dos glaciares está a chegar e espero congelar direitinho até ao século XXI, ou quem sabe antes.